O Estado cosmopolita

Para uma utopia realista

Ao operar a uma escala global, o terrorismo abriu um novo capítulo na sociedade de risco mundial. Tem de ser feita uma distinção clara entre o ataque propriamente dito e a ameaça terrorista, que, em resultado dele, se tornou universal. Politicamente crucial, em última análise, não é o risco em si mas a sua percepção. Aquilo que a humanidade teme que seja real, é real nas consequências que cria; o medo cria a sua própria realidade. O capitalismo requer optimismo, o qual é destruído pela crença colectiva numa ameaça terrorista, podendo fazer mergulhar na crise uma economia-mundo já de si periclitante. Quem olhar o mundo como um risco de terror, torna-se incapaz de agir. É esta a primeira armadilha armada pelos terroristas. A segunda: a manipulação política da percepção do risco de terrorismodesencadeia a necessidade de segurança, que suprime a liberdade e a democracia. Justamente as coisas que constituem a superioridade da modernidade. Se nos confrontarmos com a escolha entre liberdade e sobrevivência será já demasiado tarde, pois a maioria das pessoas escolherá situar-se contra a liberdade.

O maior perigo, por isso, não é o risco mas a percepção do risco, que liberta fantasias de perigo e antídotos para elas, roubando dessa maneira à sociedade moderna a sua liberdade de acção. Neste contexto, o puro cinismo é útil: quantas vezes experimentámos já o fim do mundo e lhe sobrevivemos? Sveso, Chernobyl, as mudanças climatéricas, as toxinas na nossa alimentação, a doença das vacas loucas. A pergunta chave que os ataques levantam, no entanto, é quanta liberdade e quanta segurança ­ isto é, quanta insegurança ­ serão necessárias para assegurar a sobrevivência.

No passado, levantou-se e discutiu-se repetidamente a seguinte questão: o que é que pode unir o mundo? A resposta hipotética era “um ataque de Marte”. Este terrorismo é o ataque de uma Marte interior. Pelo menos na duração de um momento histórico, os campos em conflito estão unidos contra um inimigo comum.

É justamente a universalização da ameaça terrorista aos estados do mundo que faz da luta contra o terrorismo global um desafio à política internacional: forjam-se alianças transversais a campos opostos, conflitos regionais são travados, e, desta forma, as cartas da política mundial são de novo baralhadas. É estonteante a velocidade a que as prioridades da política externa da América foram radicalmente alteradas. O projecto de um sistema de defesa nacional com mísseis ainda dominava o pensamento e a acção política de Washington até muito recentemente, mas agora nem sequer é mencionado. Por outro lado, parece que se está a instalar a ideia de que até um sistema perfeito de defesa por mísseis não teria conseguido evitar este ataque. Daí que a segurança interna dos EUA só possa ser garantida por uma aliança global, e não por uma iniciativa nacional única, fundada na tecnologia. As rivalidades com Pequim e Moscovo são colocadas em banho-maria ­ pelo menos por agora ­ uma vez que as necessidades da “defesa” da segurança interna dos EUA no Afeganistão tornam essencial a cooperação com Moscovo, entre outros. Entretanto, Israel e os palestinianos estão debaixo de uma pressão intensa para chegarem a um verdadeiro armistício, uma vez que essa é considerada a chave para a participação dos estados árabes e islâmicos na luta contra o terrorismo.

O poder de uma frente comum contra o terrorismo também criou uma liberdade de acção nova para a União Europeia. De repente, as rivalidades entre as diferentes nações da Europa dissolvem-se, e o interesse comum ganha relevância, não apenas dentro da própria Europa, mas também entre a Europa e os Estados Unidos: tempos difíceis para os eurocépticos! E tempos auspiciosos para a entrada da Grã-Bretanha no espaço europeu. Claro que este interesse comum pode desaparecer sob o teste ácido das operações militares em curso.

Como será então possível a acção política na era da globalização? A minha resposta é a seguinte: através da percepção da natureza global dos perigos, que transforma o sistema das políticas nacionais e internacionais, aparentemente fixo, em algo fluído e flexível. É necessário distinguir entre os riscos e as oportunidades criadas pelos perigos. As oportunidades invisíveis de uma sociedade global de risco têm de ser compreendidas como efeitos políticos secundários para a vida e os corpos. Nesta medida, os medos presentes produzem uma situação quase-revolucionária na política mundial, que pode ser usada de formas diversas, conduzindo ao fim do isolacionismo americano na política internacional, o qual tem os seus efeitos na domesticação de rivalidades nacionais e conflitos regionais, mas também possivelmente, nas “guerras justas”, produzindo multidões de novos terroristas suicidas. E a redução das liberdades, o proteccionismo, e a demonização do outro cultural.

O ataque terrorista reforça o Estado, mas enfraquece e destrona duas ideias anteriormente dominantes: o estado- nação , e o estado neo-liberal . O neo-liberalismo e a ideia do mercado livre desenvolveram uma força hegemónica nas últimas duas décadas e são considerados as chaves para o futuro. É prematuro, com certeza, falar no fim do neo-liberalismo. No entanto, o risco do terrorismo global, fornece-nos uma antevisão dos conflitos nos quais a globalização está a mergulhar o mundo. E em tempos de conflito global dramático, o princípio de substituição da política e do estado pela economia, perde rapidamente a sua capacidade para ser convincente. Quando lhe perguntaram se os 40 biliões de dólares que a administração americana pedia ao congresso para a sua “guerra contra o terrorismo” e para a reconstrução, não contradiziam o compromisso com uma política económica neo-liberal ­ com o qual a administração de Bush chegou ao poder ­ o porta-voz do presidente respondeu laconicamente, “a segurança nacional tem prioridade.”

Mas a segurança nacional ­ e esta é a segunda grande lição do ataque terroristas ­ já não é segurança nacional . Claro que desde sempre houve alianças. A diferença crucial, no entanto, é que, actualmente, alianças globais são necessárias não apenas para segurança externa, mas também para segurança interna . A distinção entre interna e externa, polícia e exército, crime e guerra, guerra e paz ­ que subjazem à nossa concepção do mundo ­ desapareceram, e necessitam ser renegociadas e reimplantadas. Em consequência, a categoria do estado-nação torna-se uma categoria fantasma.

Anteriormente, dava-se o caso da política externa ser uma questão de escolha, e não de necessidade. Hoje em dia, por outro lado, domina uma nova combinação das duas: política externa e interna, segurança nacional e cooperação internacional são indestrinçáveis. Perante a ameaça do terrorismo global ­ mas também das mudanças climatéricas, das migrações, das toxinas na alimentação, do crime organizado ­ o único caminho para a segurança nacional é a co-operação internacional. O seguinte princípio paradoxal mantém-se verdadeiro: os estados têm de se desnacionalizar e transnacionalizar para o seu próprio interesse nacional, isto é, abdicar de soberania, para que, num mundo globalizado, possam tratar dos seus problemas nacionais. Na sequência do ataque terrorista, a política interna alemã tornou-se um elemento importante na política de segurança interna dos EUA, isto é, da política externa americana, e das também as interligadas políticas internas, externas e de defesa, da Alemanha, França, Paquistão, Grã-Bretanha, Rússia e de muitos outros estados.

Max Weber partia do princípio de acordo com o qual as decisões sobre a guerra e a paz se encontravam entre as “características essenciais” do Estado. Sou um cidadão de Munique. Quem é que decide sobre a guerra e a paz em nome dos cidadãos de Munique? O concelho municipal de Munique? O governo do estado da Baviera? O parlamento federal alemão? O chanceler federal? O parlamento europeu? A comissão europeia? A NATO? O presidente dos Estados Unidos? O Conselho de Segurança das Nações Unidas? Em termos formais, a resposta pode ser definida, mas, de facto, tornou-se tudo muito pouco claro. Em última instância, a decisão nacional sobre a guerra e a paz já não corresponde às competências autónomas de estados individuais. O que constituía para Max Weber uma unidade indivisível ­ Estado e soberania ­ há muito tempo que se tornou divergente. Isto quer dizer que a capacidade dos estados para agir tem de facto de ser conceptualmente entendida e politicamente inferida, independentemente de conceitos anteriores de soberania e de autonomia.

A ameaça terrorista global inaugura uma nova era de cooperação transnacional e multilateral. E justamente, não conduz ao renascer do estado-nação, mas à descoberta e desenvolvimento do que eu chamo estados transnacionais cooperantes . A perspectiva nacional torna-se um obstáculo à invenção transnacional da política e do estado na era da globalização. Isto está agora a ser aprendido e ensaiado nas repentinas e emergentes questões da “segurança interna” sem fronteiras dos ex-estados-nação, e pode ser aplicado às questões dos perigos decorrentes das mudanças climatéricas, da pobreza global, dos direitos humanos.

Dois modelos de cooperação transnacional entre estados estão a emergir: estados vigilantes transnacionais e estados cosmopolitas . Com a ajuda do novo poder de vigilância cooperante, os estados ameaçam transformar-se em estados-fortaleza, nos quais a segurança e a militarização ganham primazia, enquanto a liberdade e a democracia em larga medida se tornam secundárias. Já há vozes que denunciam que às sociedades ocidentais, estragadas pela paz e pela riqueza, falta um sentido agudo de amigo e inimigo, bem como a disponibilidade para sacrificar a precedência, até agora tida por essa maravilha que são os direitos humanos, às medidas necessárias à auto-defesa. Este discurso de construção de uma cidadela ocidental é omnipresente, e tornar-se-á sem dúvida mais estridente nos próximos anos: para os vencedores da globalização haveria o neo-liberalismo, para os vencidos restaria o medo do terrorismo e dos estrangeiros, e, em doses medidas, o veneno do racismo.

Pelo contrário, no futuro, a questão essencial será, quem somos, porque é que lutamos quando lutamos contra o terrorismo transnacional? Uma resposta possível seria um sistema de estados cosmopolitas, baseado no reconhecimento do outro e da alteridade. Estados-nação representam uma ameaça para a diversidade interna, para as lealdades múltiplas, para os movimentos e o fluir que, na era da globalização, existem inevitavelmente dentro das próprias fronteiras. Estados cosmopolitas, por outro lado, dão relevo à necessidade de combinar auto-determinação com a responsabilidade pelos outros, estranhos dentro e fora das fronteiras nacionais. Não se trata de negar ou sequer de condenar a auto-determinação. Pelo contrário, tem de libertar-se da sua visão afunilada e combinar com uma abertura cosmopolita aos interesses do mundo. Estados cosmopolitas não lutam apenas contra o terrorismo, mas também contra as causas do terrorismo no mundo. Na solução dos problemas globais, que parecem insolúveis ao nível de um só estado, reforçar-se-á e renovar-se-á o político como meio de explicar e de convencer.

Estados cosmopolitas são fundados no princípio da indiferença nacional do Estado. Tal como as guerras civis religiosas do século XVII acabaram, na Paz de Vestefália, com a separação entre o estado e a religião, assim poderiam ­ e é esta a minha tese ­ as guerras (civis) nacionais do século XX ser solucionadas pela separação entre estado e nação. Da mesma forma que é apenas o estado laico que permite a prática de diversas religiões, assim estados cosmopolitas poderiam garantir a co-existência de identidades nacionais e religiosas através do princípio da tolerância constitucional.

Podemos e devemos repensar a experiência de uma Europa política nestes termos, enquanto experiência na formação de estados cosmopolitas. Uma Europa cosmopolita, que vai buscar a sua força justamente não apenas à luta contra o terrorismo ­ que simultaneamente afirma valores liberais ­ mas também à afirmação e aceitação das diversidades nacionais europeias, incluindo os seus aspectos mais teimosamente defendidos. O que poderia ser, ou poderia tornar-se, uma utopia absolutamente realista.

Published 30 January 2002
Original in German
Translated by Adriana Bebiano

Contributed by Non! Cultura & Intervenção © Ulrich Beck / Non! Cultura & Intervenção / Eurozine

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