OS PROCESSOS DA GLOBALIZAÇĂO

1. Introduçăo

Nas tręs últimas décadas, as interacçőes transnacionais conheceram uma intensificaçăo dramática, desde a globalizaçăo dos sistemas de produçăo e das transferęncias financeiras, ŕ disseminaçăo, a uma escala mundial, de informaçăo e imagens através dos meios de comunicaçăo social ou ŕs deslocaçőes em massa de pessoas, quer como turistas, quer como trabalhadores migrantes ou refugiados. A extraordinária amplitude e profundidade destas interacçőes transnacionais levaram a que alguns autores as vissem como ruptura em relaçăo ŕs anteriores formas de interacçőes transfronteiriças, um fenómeno novo designado por “globalizaçăo” ( Featherstone, 1990; Giddens, 1990; Albrow e King, 1990), “formaçăo global” (Chase-Dunn, 1991), “cultura global” (Appadurai, 1990, 1997; Robertson, 1992), “sistema global” (Sklair, 1991), “modernidades globais” (Featherstone et al., 1995), “processo global” (Friedman, 1994), “culturas da globalizaçăo” (Jameson e Miyoshi, 1998) ou “cidades globais” (Sassen, 1991, 1994; Fortuna, 1997). Giddens define globalizaçăo como “a intensificaçăo de relaçőes sociais mundiais que unem localidades distantes de tal modo que os acontecimentos locais săo condicionados por eventos que acontecem a muitas milhas de distância e vice versa” e acusa os sociólogos de uma acomodaçăo indevida ŕ ideia de “sociedade” enquanto um sistema fechado (1990: 64). No mesmo sentido, Featherstone desafia a sociologia a “teorizar e encontrar formas de investigaçăo sistemática que ajudem a clarificar estes processos globalizantes e estas formas destrutivas de vida social que tornam problemático o que por muito tempo foi visto como o objecto mais básico da sociologia: a sociedade concebida quase exclusivamente como o Estado-naçăo bem delimitado (1990: 2). Para o Grupo de Lisboa, a globalizaçăo é uma fase posterior ŕ internacionalizaçăo e ŕ multinacionalizaçăo porque, ao contrário destas, anuncia o fim do sistema nacional enquanto núcleo central das actividades e estratégias humanas organizadas (1994).

Uma revisăo dos estudos sobre os processos de globalizaçăo mostra-nos que estamos perante um fenómeno multifacetado com dimensőes económicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo. Por esta razăo, as explicaçőes monocausais e as interpretaçőes monolíticas deste fenómeno parecem pouco adequadas. Acresce que a globalizaçăo das últimas tręs décadas, em vez de se encaixar no padrăo moderno ocidental de globalizaçăo – globalizaçăo como homogeneizaçăo e uniformizaçăo – sustentado tanto por Leibniz, como por Marx, tanto pelas teorias da modernizaçăo, como pelas teorias do desenvolvimento dependente, parece combinar a universalizaçăo e a eliminaçăo das fronteiras nacionais, por um lado, o particularismo, a diversidade local, a identidade étnica e o regresso ao comunitarismo, por outro. Além disso, interage de modo muito diversificado com outras transformaçőes no sistema mundial que lhe săo concomitantes, tais como o aumento dramático das desigualdades entre países ricos e países pobres e, no interior de cada país, entre ricos e pobres, a sobrepopulaçăo, a catástrofe ambiental, os conflitos étnicos, a migraçăo internacional massiva, a emergęncia de novos Estados e a falęncia ou implosăo de outros, a proliferaçăo de guerras civis, o crime globalmente organizado, a democracia formal como uma condiçăo política para a assistęncia internacional, etc.

Antes de propor uma interpretaçăo da globalizaçăo contemporânea, descreverei brevemente as suas características dominantes, vistas de uma perspectiva económica, política e cultural. De passo aludirei aos tręs debates mais importantes que tem suscitado, formuláveis em termos das seguintes questőes: 1) a globalizaçăo é um fenómeno novo ou velho?; 2) a globalizaçăo é monolítica, ou tem aspectos positivos e aspectos negativos?; 3) aonde conduz a crescente intensificaçăo da globalizaçăo? Nos debates acerca da globalizaçăo há uma forte tendęncia para reduzi-la ŕs suas dimensőes económicas. Sem duvidar da importância de tal dimensăo, penso que é necessário dar igual atençăo ŕs dimensőes social, política e cultural.

Falar de características dominantes da globalizaçăo pode transmitir a ideia de que a globalizaçăo é năo só um processo linear, mas também um processo consensual. Trata-se obviamente de uma ideia falsa, como se mostrará adiante. Mas apesar de falsa é, ela própria, também dominante. E sendo falsa, năo deixa de ter uma ponta de verdade. A globalizaçăo, longe de ser consensual, é, como veremos, um vasto e intenso campo de conflitos entre grupos sociais, Estados e interesses hegemónicos, por um lado, e grupos sociais, Estados e interesses subalternos, por outro; e mesmo no interior do campo hegemónico há divisőes mais ou menos significativas. No entanto, por sobre todas as suas divisőes internas, o campo hegemónico actua na base de um consenso entre os seus mais influentes membros. É esse consenso que năo só confere ŕ globalizaçăo as suas características dominantes, como também legitima estas últimas como as únicas possíveis ou as únicas adequadas. Daí que, da mesma forma que aconteceu com os conceitos que a precederam, tais como modernizaçăo e desenvolvimento, o conceito de globalizaçăo tenha uma componente descritiva e uma componente prescritiva. Dada a amplitude dos processos em jogo, a prescriçăo é um conjunto vasto de prescriçőes todas elas ancoradas no consenso hegemónico. Este consenso é conhecido por “consenso neoliberal” ou “Consenso de Washington” por ter sido em Washington, em meados da década de oitenta, que ele foi subscrito pelos Estados centrais do sistema mundial, abrangendo o futuro da economia mundial, as políticas de desenvolvimento e especificamente o papel do Estado na economia. Nem todas as dimensőes da globalizaçăo estăo inscritas do mesmo modo neste consenso, mas todas săo afectadas pelo seu impacto. O consenso neoliberal propriamente dito é um conjunto de quatro consensos adiante mencionados dos quais decorrem outros que serăo igualmente referidos. Este consenso está hoje relativamente fragilizado em virtude de os crescentes conflitos no interior do campo hegemónico e da resistęncia que tem vindo a ser protagonizada pelo campo subalterno ou contra-hegemónico. Isto é tanto assim que o período actual é já designado por pós-Consenso de Washington. No entanto, foi esse consenso que nos trouxe até aqui e é por isso sua a paternidade das características hoje dominantes da globalizaçăo.

Os diferentes consensos que constituem o consenso neoliberal partilham uma ideia-força que, como tal, constitui um meta consenso. Essa ideia é a de que estamos a entrar num período em que desapareceram as clivagens políticas profundas. As rivalidades imperialistas entre os países hegemónicos, que no século XX provocaram duas guerras mundiais, desapareceram, dando origem ŕ interdependęncia entre as grandes potęncias, ŕ cooperaçăo e ŕ integraçăo regionais. Hoje em dia, existem apenas pequenas guerras, quase todas na periferia do sistema mundial e muitas delas de baixa intensidade. De todo o modo, os países centrais, através de vários mecanismos (intervençőes selectivas, manipulaçăo da ajuda internacional, controlo através da dívida externa), tęm meios para manter sob controlo esses focos de instabilidade. Por sua vez, os conflitos entre capital e trabalho que, por deficiente institucionalizaçăo, contribuíram para a emergęncia do fascismo e do nazismo, acabaram sendo plenamente institucionalizados nos países centrais depois da Segunda Guerra Mundial. Hoje, num período pós-fordista, tais conflitos estăo a ser relativamente desinstitucionalizados sem que isso cause qualquer instabilidade porque, entretanto, a classe operária fragmentou-se e estăo hoje a emergir novos compromissos de classe menos institucionalizados e a ter lugar em contextos menos corporativistas.

Deste metaconsenso faz ainda parte a ideia de que desapareceram igualmente as clivagens entre diferentes padrőes de transformaçăo social. Os tręs primeiros quartéis do século XX foram dominados pelas rivalidades entre dois padrőes antagónicos: a revoluçăo e o reformismo. Ora se, por um lado, o colapso da Uniăo Soviética e a queda do Muro de Berlim significaram o fim do paradigma revolucionário, a crise do Estado-Providęncia nos países centrais e semiperiféricos significa que está igualmente condenado o paradigma reformista. O conflito Leste/Oeste desapareceu e arrastou consigo o conflito Norte/Sul que nunca foi um verdadeiro conflito e que é agora um campo fértil de interdependęncias e cooperaçőes. Em face disto, a transformaçăo social é, a partir de agora, năo uma questăo política, e sim uma questăo técnica. Ela năo é mais que a repetiçăo acelerada das relaçőes cooperativas entre grupos sociais e entre Estados.

Fukuyama (1992), com a sua ideia do fim da história, deu expressăo e divulgaçăo a este metaconsenso. Huntington (1993) secundou-o com a sua ideia do “choque de civilizaçőes”, ao defender que as clivagens tinham deixado de ser políticas para passarem a ser civilizacionais. É a ausęncia das clivagens políticas da modernidade ocidental que leva Huntington a reinventá-las em termos de uma ruptura entre o Ocidente, agora entendido como tipo de civilizaçăo, e o que misteriosamente designa por “conexăo islâmica confucionista”. Este metaconsenso e os que decorrem subjazem ŕs características dominantes da globalizaçăo em suas múltiplas facetas a seguir descritas. Pelo que ficou dito atrás e pela análise que se seguirá, torna-se claro que as características dominantes da globalizaçăo săo as características da globalizaçăo dominante ou hegemónica. Mais adiante faremos a distinçăo, para nós crucial, entre globalizaçăo hegemónica e globalizaçăo contra-hegemónica.

2. A globalizaçăo económica e o Neoliberalismo

Fröbel, Heinrichs e Kreye (1980) foram provavelmente os primeiros a falar, no início da década de oitenta, da emergęncia de uma nova divisăo internacional do trabalho
, baseada na globalizaçăo da produçăo levada a cabo pelas empresas multinacionais, gradualmente convertidas em actores centrais da nova economia mundial. Os traços principais desta nova economia mundial săo os seguintes: economia dominada pelo sistema financeiro e pelo investimento ŕ escala global; processos de produçăo flexíveis e multilocais; baixos custos de transporte; revoluçăo nas tecnologias de informaçăo e de comunicaçăo; desregulaçăo das economias nacionais; preeminęncia das agęncias financeiras multilaterais; emergęncia de tręs grandes capitalismos transnacionais: o americano, baseado nos EUA e nas relaçőes privilegiadas deste país com o Canadá, o México e a América Latina; o japonęs, baseado no Japăo e nas suas relaçőes privilegiadas com os quatro pequenos tigres e com o resto da Ásia; e o europeu, baseado na Uniăo Europeia e nas relaçőes privilegiadas desta com a Europa de Leste e com o Norte de África.

Estas transformaçőes tęm vindo a atravessar todo o sistema mundial, ainda que com intensidade desigual consoante a posiçăo dos países no sistema mundial. As implicaçőes destas transformaçőes para as políticas económicas nacionais podem ser resumidas nas seguintes orientaçőes ou exigęncias: as economias nacionais devem abrir-se ao mercado mundial e os preços domésticos devem tendencialmente adequar-se aos preços internacionais; deve ser dada prioridade ŕ economia de exportaçăo; as políticas monetárias e fiscais devem ser orientadas para a reduçăo da inflaçăo e da dívida pública e para a vigilância sobre a balança de pagamentos; os direitos de propriedade privada devem ser claros e invioláveis; o sector empresarial do Estado deve ser privatizado; a tomada de decisăo privada, apoiada por preços estáveis, deve ditar os padrőes nacionais de especializaçăo; a mobilidade dos recursos, dos investimentos e dos lucros; a regulaçăo estatal da economia deve ser mínima; deve reduzir-se o peso das políticas sociais no orçamento do Estado, reduzindo o montante das transferęncias sociais, eliminando a sua universalidade, e transformando-as em meras medidas compensatórias em relaçăo aos estratos sociais inequivocamente vulnerabilizados pela actuaçăo do mercado.1

Centrando-se no impacto urbano da globalizaçăo económica, Saskia Sassen detecta mudanças profundas na geografia, na composiçăo e estrutura institucional da economia global (Sassen, 1994: 10). No que respeita ŕ nova geografia, argumenta que “comparativamente aos anos cinquenta, os anos oitenta conheceram um estreitamento da geografia da economia global e a acentuaçăo do eixo Este-Leste. Isto torna-se evidente com o enorme crescimento do investimento dentro do que é muitas vezes denominado pela : os Estados Unidos da América, a Europa Ocidental e o Japăo” (Sassen, 1994:10). Outra característica da nova geografia é que o investimento estrangeiro directo, do qual, durante uns tempos, a América Latina foi o maior beneficiário, dirigiu-se para Leste, Sul e Sudeste Asiático, onde a taxa anual de crescimento aumentou em média 37% por ano entre 1985 e 1989. Por outro lado, enquanto nos anos cinquenta o maior fluxo internacional era o comércio mundial, concentrado nas matérias-primas, outros produtos primários e recursos manufacturados, a partir dos anos oitenta a distância entre o crescimento da taxa de exportaçőes e o crescimento da taxa dos fluxos financeiros aumentou drasticamente: após a crise de 1981-82 e até 1990, o investimento estrangeiro directo global cresceu em média 29% por ano, uma subida histórica (Sassen, 1994: 14).

Por fim, no que toca ŕ estrutura institucional, Sassen defende que estamos perante um novo regime internacional, baseado na ascendęncia da banca e dos serviços internacionais. As empresas multinacionais săo agora um importante elemento na estrutura institucional, juntamente com os mercados financeiros globais e com os blocos comerciais transnacionais. De acordo com Sassen, todas estas mudanças contribuíram para a formaçăo de novos locais estratégicos na economia mundial: zonas de processamento para exportaçăo, centros financeiros offshore e cidades globais (Sassen, 1994: 18). Uma das transformaçőes mais dramáticas produzidas pela globalizaçăo económica neoliberal reside na enorme concentraçăo de poder económico por parte das empresas multinacionais: das 100 maiores economias do mundo, 47 săo empresas multinacionais; 70% do comércio mundial é controlado por 500 empresas multinacionais; 1% das empresas multinacionais detém 50% do investimento directo estrangeiro (Clarke, 1996).

Em suma, a globalizaçăo económica é sustentada pelo consenso económico neoliberal cujas tręs principais inovaçőes institucionais săo: restriçőes drásticas ŕ regulaçăo estatal da economia; novos direitos de propriedade internacional para investidores estrangeiros, inventores e criadores de inovaçőes susceptíveis de serem objecto de propriedade intelectual (Robinson, 1995: 373); subordinaçăo dos Estados nacionais ŕs agęncias multilaterais tais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organizaçăo Mundial do Comércio. Dado o carácter geral deste consenso, as receitas em que ele se traduziu foram aplicadas, ora com extremo rigor (o que designo por modo da jaula de ferro), ora com alguma flexibilidade (o modo da jaula de borracha). Por exemplo, os países asiáticos evitaram durante muito tempo aplicar integralmente as receitas e alguns deles, como, por exemplo, a Índia e a Malásia, conseguiram até hoje aplicá-las apenas selectivamente.

Como veremos a seguir, săo os países periféricos e semiperiféricos os que mais estăo sujeitos ŕs imposiçőes do receituário neoliberal, uma vez que este é transformado pelas agęncias financeiras multilaterais em condiçőes para a renegociaçăo da dívida externa através dos programas de ajustamento estrutural. Mas, dado o crescente predomínio da lógica financeira sobre a economia real, mesmo os Estados centrais, cuja dívida pública tem vindo a aumentar, estăo sujeitos ŕs decisőes das agęncias financeiras de rating, ou seja, das empresas internacionalmente acreditadas para avaliar a situaçăo financeira dos Estados e os consequentes riscos e oportunidades que eles oferecem aos investidores internacionais. Por exemplo, a baixa de nota decretada pela empresa Moody’s ŕ dívida pública da Suécia e do Canadá em meados da década de noventa foi decisiva para os cortes nas despesas sociais adoptados pelos dois países (Chossudovsky, 1997: 18).

3. A globalizaçăo social e as desigualdades

Quanto ŕs relaçőes sócio-políticas, tem sido defendido que, embora o sistema mundial moderno tenha sido sempre estruturado por um sistema de classes, uma classe capitalista transnacional está hoje a emergir cujo campo de reproduçăo social é o globo enquanto tal e que facilmente ultrapassa as organizaçőes nacionais de trabalhadores, bem como os Estados externamente fracos da periferia e da semiperiferia do sistema mundial.

As empresas multinacionais săo a principal forma institucional desta classe capitalista transnacional e a magnitude das transformaçőes que elas estăo a suscitar na economia mundial está patente no facto de que mais de um terço do produto industrial mundial é produzido por estas empresas e de que uma percentagem muito mais elevada é transaccionado entre elas. Embora a novidade organizacional das empresas multinacionais possa ser questionada, parece inegável que a sua prevalęncia na economia mundial e o grau e eficácia da direcçăo centralizada que elas adquirem as distingue das formas precedentes de empresas internacionais (Becker e Sklar, 1987: 2).

O impacto das empresas multinacionais nas novas formaçőes de classe e na desigualdade a nível mundial tem sido amplamente debatido nos últimos anos. Dentro da tradiçăo da teoria da dependęncia, Evans foi um dos primeiros a analisar a “tripla aliança” entre as empresas multinacionais, a elite capitalista local e o que chama “burguesia estatal” enquanto base da dinâmica de industrializaçăo e do crescimento económico de um país semiperiférico como o Brasil (Evans, 1979, 1986). Becker e Sklar, que propőem a teoria do pós-imperialismo, falam de uma emergente burguesia de executivos, uma nova classe social saída das relaçőes entre o sector administrativo do Estado e as grandes empresas privadas ou privatizadas. Esta nova classe é composta por um ramo local e por um ramo internacional. O ramo local, a burguesia nacional, é uma categoria socialmente ampla que envolve a elite empresarial, os directores de empresas, os altos funcionários do Estado, líderes políticos e profissionais influentes. Apesar de toda a heterogeneidade, estes diferentes grupos constituem, de acordo com os autores, uma classe, “porque os seus membros, apesar da diversidade dos seus interesses sectoriais, partilham uma situaçăo comum de privilégio sócio-económico e um interesse comum de classe nas relaçőes do poder político e do controlo social que săo intrínsecas ao modo de produçăo capitalista”. O ramo internacional, a burguesia internacional, é composta pelos gestores das empresas multinacionais e pelos dirigentes das instituiçőes financeiras internacionais (1987: 7).

As novas desigualdades sociais produzidas por esta estrutura de classe tęm vindo a ser amplamente reconhecidas mesmo pelas agęncias multilaterais que tęm liderado este modelo de globalizaçăo, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Para Evans, o modelo de industrializaçăo e crescimento baseado na “tripla aliança” é inerentemente injusto e apenas capaz de um tipo de redistribuiçăo “da massa da populaçăo para a burguesia estatal, as multinacionais e o capital local. A manutençăo de um equilíbrio delicado entre os tręs parceiros milita contra qualquer possibilidade de um tratamento sério ŕs questőes da redistribuiçăo de rendimentos, mesmo que membros da elite expressem um apoio ao princípio teórico da redistribuiçăo de rendimentos” (1979: 288). Em comparaçőes mais recentes entre os modelos e padrőes de desigualdade social da América Latina e do Leste Asiático, Evans acrescenta outros factores que, em sua opiniăo, podem ter contribuído para que o modelo de desenvolvimento asiático tenha produzido relativamente menos desigualdades que o modelo brasileiro. Entre esses factores contabiliza, a favor do modelo asiático, a maior autonomia do Estado, a eficięncia da burocracia estatal, a reforma agrária e a existęncia de um período inicial de protecçăo em relaçăo ao capitalismo dos países centrais (1987).2

É hoje evidente que a iniquidade da distribuiçăo da riqueza mundial se agravou nas duas últimas décadas: 54 dos 84 países menos desenvolvidos viram o seu PNB per capita decrescer nos anos 80; em 14 deles a diminuiçăo rondou os 35%; segundo o Relatório do Programa para o Desenvolvimento das Naçőes Unidas de 2001 (PNUD, 2001), mais de 1,2 biliőes de pessoas (pouco menos que 1/4 da populaçăo mundial) vivem na pobreza absoluta, ou seja, com um rendimento inferior a um dólar por dia e outros 2,8 biliőes vivem apenas com o dobro desse rendimento (PNUD, 2001: 9).3 Segundo o Relatório do Desenvolvimento do Banco Mundial de 1995, o conjunto dos países pobres, onde vive 85,2% da populaçăo mundial, detém apenas 21,5% do rendimento mundial, enquanto o conjunto dos países ricos, com 14,8% da populaçăo mundial, detém 78,5% do rendimento mundial. Uma família africana média consome hoje 20% menos do que consumia há 25 anos. Segundo o Banco Mundial, o continente africano foi o único em que, entre 1970 e 1997, se verificou um decréscimo da produçăo alimentar (World Bank, 1998). O aumento das desigualdades tem sido tăo acelerado e tăo grande que é adequado ver as últimas décadas como uma revolta das elites contra a redistribuiçăo da riqueza com a qual se pőe fim ao período de uma certa democratizaçăo da riqueza iniciado no final da Segunda Guerra Mundial. Segundo o Relatório do Desenvolvimento Humano do PNUD relativo a 1999, os 20% da populaçăo mundial a viver nos países mais ricos detinham, em 1997, 86% do produto bruto mundial, enquanto os 20% mais pobres detinham apenas 1%. Segundo o mesmo Relatório, mas relativo a 2001, no quinto mais rico concentram-se 79% dos utilizadores da internet. As desigualdades neste domínio mostram quăo distantes estamos de uma sociedade de informaçăo verdadeiramente global. A largura da banda de comunicaçăo electrónica de Săo Paulo, uma das sociedades globais, é superior ŕ de África no seu todo. E a largura da banda usada em toda a América Latina é quase igual ŕ disponível para a cidade de Seul (PNUD, 2001: 3).

Nos últimos trinta anos a desigualdade na distribuiçăo dos rendimentos entre países aumentou dramaticamente. A diferença de rendimento entre o quinto mais rico e o quinto mais pobre era, em 1960, de 30 para 1, em 1990, de 60 para 1 e, em 1997, de 74 para 1. As 200 pessoas mais ricas do mundo aumentaram para mais do dobro a sua riqueza entre 1994 e 1998. A riqueza dos tręs mais ricos bilionários do mundo excede a soma do produto interno bruto dos 48 países menos desenvolvidos do mundo (PNUD, 2001).

A concentraçăo da riqueza produzida pela globalizaçăo neoliberal atinge proporçőes escandalosas no país que tem liderado a aplicaçăo do novo modelo económico, os EUA. Já no final da década de oitenta, segundo dados do Federal Reserve Bank, 1% das famílias norte-americanas detinha 40% da riqueza do país e as 20% mais ricas detinham 80% da riqueza do país. Segundo o Banco, esta concentraçăo năo tinha precedentes na história dos EUA, nem comparaçăo com os outros países industrializados (Mander, 1996: 11).

No domínio da globalizaçăo social, o consenso neoliberal é o de que o crescimento e a estabilidade económicos assentam na reduçăo dos custos salariais, para o que é necessário liberalizar o mercado de trabalho, reduzindo os direitos laborais, proibindo a indexaçăo dos salários aos ganhos de produtividade e os ajustamentos em relaçăo ao custo de vida e eliminando a prazo a legislaçăo sobre salário mínimo. O objectivo é impedir “o impacto inflacionário dos aumentos salariais”. A contracçăo do poder de compra interno que resulta desta política deve ser suprida pela busca de mercados externos. A economia é, assim, dessocializada, o conceito de consumidor substitui o de cidadăo e o critério de inclusăo deixa de ser o direito para passar a ser a solvęncia. Os pobres săo os insolventes (o que inclui os consumidores que ultrapassam os limites do sobreendividamento). Em relaçăo a eles devem adoptar-se medidas de luta contra a pobreza, de preferęncia medidas compensatórias que minorem, mas năo eliminem, a exclusăo, já que esta é um efeito inevitável (e, por isso, justificado) do desenvolvimento assente no crescimento económico e na competitividade a nível global. Este consenso neoliberal entre os países centrais é imposto aos países periféricos e semiperiféricos através do controlo da dívida externa efectuado pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. Daí que estas duas instituiçőes sejam consideradas responsáveis pela “globalizaçăo da pobreza” (Chossudovsky, 1997). A nova pobreza globalizada năo resulta de falta de recursos humanos ou materiais, mas tăo só do desemprego, da destruiçăo das economias de subsistęncia e da minimizaçăo dos custos salariais ŕ escala mundial.

Segundo a Organizaçăo Mundial de Saúde, os países pobres tęm a seu cargo 90% das doenças que ocorrem no mundo, mas năo tęm mais do 10% dos recursos globalmente gastos em saúde; 1/5 da populaçăo mundial năo tem qualquer acesso a serviços de saúde modernos e metade da populaçăo mundial năo tem acesso a medicamentos essenciais. A área da saúde é talvez aquela em que de modo mais chocante se revela a iniquidade do mundo. Segundo o último Relatório do Desenvolvimento Humano das Naçőes Unidas, em 1998, 968 milhőes de pessoas năo tinham acesso a água potável, 2,4 biliőes (pouco menos que metade da populaçăo mundial) năo tinha acesso a cuidados básicos de saúde; em 2000, 34 milhőes de pessoas estavam infectadas com HIV/SIDA, dos quais 24,5 milhőes na África subsahariana (UNAIDS, 2000: 6); em 1998, morriam anualmente 12 milhőes de crianças (com menos de 5 anos) de doenças curáveis (UNICEF, 2000). As doenças que mais afectam a populaçăo pobre do mundo săo a malária, a tuberculose e a diarreia.4 Ante este quadro năo pode ser mais chocante a distribuiçăo mundial dos gastos com a saúde e a investigaçăo médica. Por exemplo, apenas 0,1% do orçamento da pesquisa médica e farmacęutica mundial – cerca de 100 milhőes de dólares em 1998 (PNUD, 2001: 3) – é destinado ŕ malária, enquanto a quase totalidade dos 26,4 biliőes de dólares investidos em pesquisa pelas multinacionais farmacęuticas se destina ŕs chamadas “doenças dos países ricos”: cancro, doenças cardiovasculares, do sistema nervoso, doenças endócrinas e do metabolismo. O que năo admira se tivermos em mente que a América Latina representa apenas 4% das vendas farmacęuticas globais e a África, 1%. É por isso também que apenas 1% das novas drogas comercializadas pelas companhias farmacęuticas multinacionais entre 1975 e 1997 se destinaram especificamente ao tratamento de doenças tropicais que afectam o Terceiro Mundo (Silverstein, 1999).

Apesar do aumento chocante da desigualdade entre países pobres e países ricos, apenas 4 destes últimos cumprem a sua obrigaçăo moral de contribuir com 0.7% do Produto Interno Bruto para a ajuda ao desenvolvimento. Aliás, segundo dados da OCDE, esta percentagem diminui entre 1987 e 1997 de 0,33 para 0,22 (OCDE/DAC, 2000). O mais perverso dos programas de ajuda internacional é o facto de eles ocultarem outros mecanismos de transferęncias financeiras em que os fluxos săo predominantemente dos países mais pobres para os países mais ricos. É o que se passa, por exemplo, com a dívida externa. O valor total da dívida externa dos países da África subsahariana (em milhőes de dólares) aumentou entre 1980 e 1995 de 84.119 para 226.483; no mesmo período, e em percentagem do PIB, aumentou de 30,6% para 81,3% e, em percentagem de exportaçőes, de 91,7% para 241,7% (World Bank, 1997: 247). No final do séc. XX, a África pagava 1,31 dólar de dívida externa por cada dólar de ajuda internacional que recebia (World Bank, 2000). O Fundo Monetário Internacional tem basicamente funcionado como a instituiçăo que garante que os países pobres, muitos deles cada vez mais pobres e individados, paguem as suas dívidas aos países ricos (Estados, bancos privados, agęncias multilaterais) nas condiçőes (juros, por exemplo) impostas por estes. Mas as transferęncias líquidas do Sul para o Norte assumem muitas outras formas como, por exemplo, a “fuga dos cérebros”: segundo as Naçőes Unidas, cerca de 100.000 profissionais indianos imigram para os EUA, o que corresponde a uma perda de 2 biliőes de dólares para a Índia (PNUD, 2001: 5).

4. A globalizaçăo política e o Estado-naçăo

A nova divisăo internacional do trabalho, conjugada com a nova economia política “pró-mercado”, trouxe também algumas importantes mudanças para o sistema interestatal, a forma política do sistema mundial moderno. Por um lado, os Estados hegemónicos, por eles próprios ou através das instituiçőes internacionais que controlam (em particular as instituiçőes financeiras multilaterais), comprimiram a autonomia política e a soberania efectiva dos Estados periféricos e semiperiféricos com uma intensidade sem precedentes, apesar de a capacidade de resistęncia e negociaçăo por parte destes últimos poder variar imenso.5Por outro lado, acentuou-se a tendęncia para os acordos políticos interestatais (Uniăo Europeia, NAFTA, Mercosul). No caso da Uniăo Europeia, esses acordos evoluíram para formas de soberania conjunta ou partilhada. Por último, ainda que năo menos importante, o Estado-naçăo parece ter perdido a sua centralidade tradicional enquanto unidade privilegiada de iniciativa económica, social e política. A intensificaçăo de interacçőes que atravessam as fronteiras e as práticas transnacionais corroem a capacidade do Estado-naçăo para conduzir ou controlar fluxos de pessoas, bens, capital ou ideias, como o fez no passado.

O impacto do contexto internacional na regulaçăo do Estado-naçăo, mais do que um fenómeno novo, é inerente ao sistema interestatal moderno e está inscrito no próprio Tratado de Westphalia (1648) que o constitui. Também năo é novo o facto de o contexto internacional tendencialmente exercer uma influęncia particularmente forte no campo da regulaçăo jurídica da economia, como o testemunham os vários projectos de modelizaçăo e unificaçăo do direito económico desenvolvidos ao longo do século XX, por especialistas de direito comparado e concretizados por organizaçőes internacionais e governos nacionais. Como os próprios nomes dos projectos indicam, a pressăo internacional tem sido, tradicionalmente, no sentido da uniformizaçăo e da normalizaçăo, o que é bem ilustrado pelos projectos pioneiros de Ernest Rabel, em inícios da década de 30, e pela constituiçăo do Instituto Internacional para a Unificaçăo do Direito Privado (UNIDROIT) com o objectivo de unificar o direito dos contratos internacionais, o que conduziu, por exemplo, ŕ lei uniformizada na formaçăo de contratos de vendas internacionais (ULFIS, 1964) e a Convençăo na venda internacional de bens (CISG, 1980) (van der Velden, 1984: 233).

A tradiçăo da globalizaçăo é para alguns muito mais longa. Por exemplo, Tilly distingue quatro ondas de globalizaçăo no passado milénio: nos séculos XIII, XVI, XIX e no final do século XX (1995). Apesar desta tradiçăo histórica, o impacto actual da globalizaçăo na regulaçăo estatal parece ser um fenómeno qualitativamente novo, por duas razőes principais. Em primeiro lugar, é um fenómeno muito amplo e vasto que cobre um campo muito grande de intervençăo estatal e que requer mudanças drásticas no padrăo de intervençăo. Para Tilly, o que distingue a actual onda de globalizaçăo da onda que ocorreu no século XIX é o facto de esta última ter contribuído para o fortalecimento do poder dos Estados centrais (Ocidentais), enquanto a actual globalizaçăo produz o enfraquecimento dos poderes do Estado. A pressăo sobre os Estados é agora relativamente monolítica – o “Consenso de Washington” – e em seus termos o modelo de desenvolvimento orientado para o mercado é o único modelo compatível com o novo regime global de acumulaçăo, sendo, por isso, necessário impor, ŕ escala mundial, políticas de ajustamento estrutural. Esta pressăo central opera e reforça-se em articulaçőes com fenómenos e desenvolvimentos tăo díspares como o fim da guerra fria, as inovaçőes dramáticas nas tecnologias de comunicaçăo e de informaçăo, os novos sistemas de produçăo flexível, a emergęncia de blocos regionais, a proclamaçăo da democracia liberal como regime político universal, a imposiçăo global do mesmo modelo de lei de protecçăo da propriedade intelectual, etc.

Quando comparado com os processos de transnacionalizaçăo precedentes, o alcance destas pressőes torna-se particularmente visível uma vez que estas ocorrem após décadas de intensa regulaçăo estatal da economia, tanto nos países centrais, como nos países periféricos e semiperiféricos. A criaçăo de requisitos normativos e institucionais para as operaçőes do modelo de desenvolvimento neoliberal envolve, por isso, uma destruiçăo institucional e normativa de tal modo maciça que afecta, muito para além do papel do Estado na economia, a legitimidade global do Estado para organizar a sociedade.

O segundo factor de novidade da globalizaçăo política actual é que as assimetrias do poder transnacional entre o centro e a periferia do sistema mundial, i.e., entre o Norte e o Sul, săo hoje mais dramáticas do que nunca. De facto, a soberania dos Estados mais fracos está agora directamente ameaçada, năo tanto pelos Estados mais poderosos, como costumava ocorrer, mas sobretudo por agęncias financeiras internacionais e outros actores transnacionais privados, tais como as empresas multinacionais. A pressăo é, assim, apoiada por uma coligaçăo transnacional relativamente coesa, utilizando recursos poderosos e mundiais.

Tendo em mente a situaçăo na Europa e na América do Norte, Bob Jessop identifica tręs tendęncias gerais na transformaçăo do poder do Estado. Em primeiro lugar, a desnacionalizaçăo do Estado, um certo esvaziamento do aparelho do Estado nacional que decorre do facto de as velhas e novas capacidades do Estado estarem a ser reorganizadas, tanto territorial como funcionalmente, aos níveis subnacional e supranacional. Em segundo lugar, a de-estatizaçăo dos regimes políticos reflectida na transiçăo do conceito de governo (government) para o de governaçăo (governance), ou seja, de um modelo de regulaçăo social e económica assente no papel central do Estado para um outro assente em parcerias e outras formas de associaçăo entre organizaçőes governamentais, para-governamentais e năo-governamentais, nas quais o aparelho de Estado tem apenas tarefas de coordenaçăo enquanto primus inter pares. E, finalmente, uma tendęncia para a internacionalizaçăo do Estado nacional expressa no aumento do impacto estratégico do contexto internacional na actuaçăo do Estado, o que pode envolver a expansăo do campo de acçăo do Estado nacional sempre que for necessário adequar as condiçőes internas ŕs exigęncias extra-territoriais ou transnacionais (Jessop, 1995:2).

Apesar de năo se esgotar nele, é no campo da economia que a transnacionalizaçăo da regulaçăo estatal adquire uma maior salięncia. No que respeita aos países periféricos e semiperiféricos, as políticas de “ajustamento estrutural” e de “estabilizaçăo macroeconómica” – impostas como condiçăo para a renegociaçăo da dívida externa – cobrem um enorme campo de intervençăo económica, provocando enorme turbulęncia no contrato social, nos quadros legais e nas molduras institucionais: a liberalizaçăo dos mercados; a privatizaçăo das indústrias e serviços; a desactivaçăo das agęncias regulatórias e de licenciamento; a desregulaçăo do mercado de trabalho e a “flexibilizaçăo” da relaçăo salarial; a reduçăo e a privatizaçăo, pelo menos parcial, dos serviços de bem estar social (privatizaçăo dos sistemas de pensőes, partilha dos custos dos serviços sociais por parte dos utentes, critérios mais restritos de elegibilidade para prestaçőes de assistęncia social, expansăo do chamado terceiro sector, o sector privado năo lucrativo, criaçăo de mercados no interior do próprio Estado, como, por exemplo, a competiçăo mercantil entre hospitais públicos); uma menor preocupaçăo com temas ambientais; as reformas educacionais dirigidas para a formaçăo profissional mais do que para a construçăo de cidadania; etc. Todas estas exigęncias do “Consenso de Washington” exigem mudanças legais e institucionais maciças. Dado que estas mudanças tęm lugar no fim de um período mais ou menos longo de intervençăo estatal na vida económica e social (năo obstante as diferenças consideráveis no interior do sistema mundial), o retraimento do Estado năo pode ser obtido senăo através da forte intervençăo estatal. O Estado tem de intervir para deixar de intervir, ou seja, tem de regular a sua própria desregulaçăo.

Uma análise mais aprofundada dos traços dominantes da globalizaçăo política – que săo, de facto, os traços da globalizaçăo política dominante – leva-nos a concluir que subjazem a esta tręs componentes do Consenso de Washington: o consenso do Estado fraco; o consenso da democracia liberal; o consenso do primado do direito e do sistema judicial.

O consenso do Estado fraco é, sem dúvida, o mais central e dele há ampla prova no que ficou descrito acima. Na sua base está a ideia de que o Estado é o oposto da sociedade civil e potencialmente o seu inimigo. A economia neoliberal necessita de uma sociedade civil forte e para que ela exista é necessário que o Estado seja fraco. O Estado é inerentemente opressivo e limitativo da sociedade civil, pelo que só reduzindo o seu tamanho é possível reduzir o seu dano e fortalecer a sociedade civil. Daí que o Estado fraco seja também tendencialmente o Estado mínimo. Esta ideia fora inicialmente defendida pela teoria política liberal, mas foi gradualmente abandonada ŕ medida que o capitalismo nacional, enquanto relaçăo social e política, foi exigindo maior intervençăo estatal. Deste modo, a ideia do Estado como oposto da sociedade civil foi substituída pela ideia do Estado como espelho da sociedade civil. A partir de entăo um Estado forte passou a ser a condiçăo de uma sociedade civil forte. O consenso do Estado fraco visa repor a ideia liberal original.

Esta reposiçăo tem-se revelado extremamente complexa e contraditória e, talvez por isso, o consenso do Estado fraco é, de todos os consensos neoliberais, o mais frágil e mais sujeito a correcçőes. É que o “encolhimento” do Estado – produzido pelos mecanismos conhecidos, tais como a desregulaçăo, as privatizaçőes e a reduçăo dos serviços públicos – ocorre no final de um período de cerca de cento e cinquenta anos de constante expansăo regulatória do Estado. Assim, como referi atrás, desregular implica uma intensa actividade regulatória do Estado para pôr fim ŕ regulaçăo estatal anterior e criar as normas e as instituiçőes que presidirăo ao novo modelo de regulaçăo social. Ora tal actividade só pode ser levada a cabo por um Estado eficaz e relativamente forte. Tal como o Estado tem de intervir para deixar de intervir, também só um Estado forte pode produzir com eficácia a sua fraqueza. Esta antinomia foi responsável pelo fracasso da estratégia dos USAID e do Banco Mundial para a reforma política do Estado russo depois do colapso do comunismo. Tais reformas assentaram no desmantelamento quase total do Estado soviético na expectativa de que dos seus escombros emergisse um Estado fraco e, consequentemente, uma sociedade civil forte. Para surpresa dos progenitores, o que emergiu destas reformas foi um governo de mafias (Hendley, 1995). Talvez por isso o consenso do Estado fraco foi o que mais cedo deu sinais de fragilizaçăo, como bem demonstra o relatório do Banco Mundial de 1997, dedicado ao Estado e no qual se reabilita a ideia de regulaçăo estatal e se pőe o acento tónico na eficácia da acçăo estatal (Banco Mundial, 1997).

O consenso da democracia liberalvisa dar forma política ao Estado fraco, mais uma vez recorrendo ŕ teoria política liberal que particularmente nos seus primórdios defendera a convergęncia necessária entre liberdade política e liberdade económica, as eleiçőes livres e os mercados livres como os dois lados da mesma moeda: o bem comum obtível através das acçőes de indivíduos utilitaristas envolvidos em trocas competitivas com o mínimo de interferęncia estatal. A imposiçăo global deste consenso hegemónico tem criado muitos problemas quanto mais năo seja porque se trata de um modelo monolítico a ser aplicado em sociedades e realidades muito distintas. Por essa razăo, o modelo de democracia adoptado como condicionalidade política da ajuda e do financiamento internacional tende a converter-se numa versăo abreviada, senăo mesmo caricatural, da democracia liberal. Para constatar isto mesmo, basta comparar a realidade política dos países sujeitos ŕs condicionalidades do Banco Mundial e as características da democracia liberal, tal como săo descritas por David Held: o governo eleito; eleiçőes livres e justas em que o voto de todos os cidadăos tęm o mesmo peso; um sufrágio que abrange todos os cidadăos independentemente de distinçőes de raça, religiăo, classe, sexo, etc.; liberdade de conscięncia, informaçăo e expressăo em todos os assuntos públicos definidos como tal com amplitude; o direito de todos os adultos a opor-se ao governo e serem elegíveis; liberdade de associaçăo e autonomia associativa entendida como o direito a criar associaçőes independentes, incluindo movimentos sociais, grupos de interesse e partidos políticos (1993: 21). Claro que a ironia desta enumeraçăo é que, ŕ luz dela, as democracias reais dos países hegemónicos, se năo săo versőes caricaturais, săo pelo menos versőes abreviadas do modelo de democracia liberal.

O consenso sobre o primado do direito e do sistema judicial é uma das componentes essenciais da nova forma política do Estado e é também o que melhor procura vincular a globalizaçăo política ŕ globalizaçăo económica. O modelo de desenvolvimento caucionado pelo Consenso de Washington reclama um novo quadro legal que seja adequado ŕ liberalizaçăo dos mercados, dos investimentos e do sistema financeiro. Num modelo assente nas privatizaçőes, na iniciativa privada e na primazia dos mercados o princípio da ordem, da previsibilidade e da confiança năo pode vir do comando do Estado. Só pode vir do direito e do sistema judicial, um conjunto de instituiçőes independentes e universais que criam expectativas normativamente fundadas e resolvem litígios em funçăo de quadros legais presumivelmente conhecidos de todos. A proeminęncia da propriedade individual e dos contratos reforça ainda mais o primado do direito. Por outro lado, a expansăo do consumo, que é o motor da globalizaçăo económica, năo é possível sem a institucionalizaçăo e popularizaçăo do crédito ao consumo e este năo é possível sem a ameaça credível de que quem năo pagar será sancionado por isso, o que, por sua vez, só é possível na medida em que existir um sistema judicial eficaz.

Nos termos do Consenso de Washington, a responsabilidade central do Estado consiste em criar o quadro legal e dar condiçőes de efectivo funcionamento ŕs instituiçőes jurídicas e judiciais que tornarăo possível o fluir rotineiro das infinitas interacçőes entre os cidadăos, os agentes económicos e o próprio Estado.

Um outro tema importante nas análises das dimensőes políticas da globalizaçăo é o papel crescente das formas de governo supraestatal, ou seja, das instituiçőes políticas internacionais, das agęncias financeiras multilaterais, dos blocos político-económicos supranacionais, dos globais, das diferentes formas de direito global (da nova lex mercatoria aos direitos humanos). Também neste caso o fenómeno năo é novo uma vez que o sistema interestatal em que temos vivido desde o século XVII promoveu, sobretudo a partir do século XIX, consensos normativos internacionais que se vieram a traduzir em organizaçőes internacionais. Entăo, como hoje, essas organizaçőes tęm funcionado como condomínios entre os países centrais. O que é novo é a amplitude e o poder da institucionalidade transnacional que se tem vindo a constituir nas últimas tręs décadas. Este é um dos sentidos em que se tem falado da emergęncia de um “governo global” (“”) (Murphy, 1994). O outro sentido, mais prospectivo e utópico, diz respeito ŕ indagaçăo sobre as instituiçőes políticas transnacionais que hăo-de corresponder no futuro ŕ globalizaçăo económica e social em curso (Falk, 1995; Chase-Dunn et al, 1998). Fala-se mesmo da necessidade de se pensar num “Estado mundial” ou numa “federaçăo mundial”, democraticamente controlada e com a funçăo de resolver pacificamente os conflitos entre estados e entre agentes globais. Alguns autores transpőem para o novo campo da globalizaçăo os conflitos estruturais do período anterior e imaginam as contrapartidas políticas a que devem dar azo. Tal como a classe capitalista global está a tentar formar o seu estado global, de que a Organizaçăo Mundial do Comércio é a guarda avançada, as forças socialistas devem criar um “partido mundial” ao serviço de uma “comunidade socialista global” ou uma “comunidade democrática global” baseada na racionalidade colectiva, na liberdade e na igualdade (Chase-Dunn et al, 1998).

5. Globalizaçăo cultural ou cultura global?

A globalizaçăo cultural assumiu um relevo especial com a chamada “viragem cultural” da década de oitenta, ou seja, com a mudança de ęnfase, nas cięncias sociais, dos fenómenos sócio-económicos para os fenómenos culturais. A “viragem cultural” veio reacender a questăo da primazia causal na explicaçăo da vida social e, com ela, a questăo do impacto da globalizaçăo cultural.6 A questăo consiste em saber se as dimensőes normativa e cultural do processo de globalizaçăo desempenham um papel primário ou secundário. Enquanto para alguns elas tęm um papel secundário, dado que a economia mundial capitalista é mais integrada pelo poder político-militar e pela interdependęncia de mercado do que pelo consenso normativo e cultural (Chase-Dunn, 1991: 88), para outros o poder político, a dominaçăo cultural e os valores e normas institucionalizadas precedem a dependęncia de mercado no desenvolvimento do sistema mundial e na estabilidade do sistema interestatal (Meyer, 1987;Bergesen, 1990). Wallerstein faz uma leitura sociológica deste debate, defendendo que “năo é por acaso… que tem havido tanta discussăo nestes últimos dez-quinze anos acerca do problema da cultura. Isso é decorrente da decomposiçăo da dupla crença do século dezanove nas arenas económica e política como lugares de progresso social e, consequentemente, de salvaçăo individual” (Wallerstein, 1991a: 198).

Embora a questăo da matriz original da globalizaçăo se ponha em relaçăo a cada uma das dimensőes da globalizaçăo, é no domínio da globalizaçăo cultural que ela se pőe com mais acuidade ou com mais frequęncia. A questăo é de saber se o que se designa por globalizaçăo năo deveria ser mais correctamente designado por ocidentalizaçăo ou americanizaçăo (Ritzer, 1995), já que os valores, os artefactos culturais e os universos simbólicos que se globalizam săo ocidentais e, por vezes, especificamente norte-americanos, sejam eles o individualismo, a democracia política, a racionalidade económica, o utilitarismo, o primado do direito, o cinema, a publicidade, a televisăo, a internet, etc.

Neste contexto, os meios de comunicaçăo electrónicos, especialmente a televisăo, tęm sido um dos grandes temas de debate. Embora a importância da globalizaçăo dos meios de comunicaçăo social seja salientada por todos, nem todos retiram dela as mesmas consequęncias. Appadurai, por exemplo, vę nela um dos dois factores (o outro săo as migraçőes em massa) responsáveis pela ruptura entre o período de que acabamos de sair (o mundo da modernizaçăo) e o período em que estamos a entrar (o mundo pós-electrónico) (1997). O novo período distingue-se pelo “trabalho da imaginaçăo” pelo facto de a imaginaçăo se ter transformado num facto social, colectivo, o ter deixado de estar confinada no indivíduo romântico e no espaço expressivo da arte, do mito e do ritual para passar a fazer parte da vida quotidiana dos cidadăos comuns (1997: 5). A imaginaçăo pós-electrónica, combinada com a desterritorializaçăo provocada pelas migraçőes, torna possível a criaçăo de universos simbólicos transnacionais, “comunidades de sentimento”, identidades prospectivas, partilhas de gostos, prazeres e aspiraçőes, em suma, o que Appadurai chama “esferas públicas diaspóricas” (1997: 4). De uma outra perspectiva, Octávio Ianni fala do “príncipe electrónico” – o conjunto das tecnologias electrónicas, informáticas e cibernéticas, de informaçăo e de comunicaçăo, com destaque para a televisăo – que se transformou no “arquitecto da ágora electrónica na qual todos estăo representados, reflectidos, defletidos ou figurados, sem o risco da convivęncia nem da experięncia” (1998: 17).

Esta temática articula-se com uma outra igualmente central no âmbito da globalizaçăo cultural: o de saber até que ponto a globalizaçăo acarreta homogeneizaçăo. Se para alguns autores a especificidade das culturas locais e nacionais está em risco (Ritzer, 1995), para outros, a globalizaçăo tanto produz homogeneizaçăo como diversidade (Robertson e Khondker, 1998). O isomorfismo institucional, sobretudo nos domínios económico e político coexiste com a afirmaçăo de diferenças e de particularismo. Para Friedman, a fragmentaçăo cultural e étnica, por um lado, e a homogeneizaçăo modernista, por outro, năo săo duas perspectivas opostas sobre o que está a acontecer, mas antes duas tendęncias, ambas constitutivas da realidade global (Featherston, 1990: 311). Do mesmo modo, Appadurai faz questăo de salientar que os media electrónicos, longe de serem o ópio do povo, săo processados pelos indivíduos e pelos grupos de uma maneira activa, um campo fértil para exercícios de resistęncia, selectividade e ironia (1997: 7). Appadurai tem vindo a salientar o crescente papel da imaginaçăo na vida social dominada pela globalizaçăo. É através da imaginaçăo que os cidadăos săo disciplinados e controlados pelos Estados, mercados e os outros interesses dominantes, mas é também da imaginaçăo que os cidadăos desenvolvem sistemas colectivos de dissidęncia e novos grafismos da vida colectiva (1999: 230).

O que năo fica claro nestes posicionamentos é a elucidaçăo das relaçőes sociais de poder que presidem ŕ produçăo tanto de homogeneizaçăo como de diferenciaçăo. Sem tal elucidaçăo, estes dois “resultados” da globalizaçăo săo postos no mesmo pé, sem que se conheçam as vinculaçőes e a hierarquia entre eles. Esta elucidaçăo é particularmente útil para analisar criticamente os processos de hibridizaçăo ou de crioulizaçăo que resultam do confronto ou da coabitaçăo entre tendęncias homogeneizantes e tendęncias particularizantes (Hall e McGrew, 1992). Segundo Appadurai, “a característica central da cultura global é hoje a política do esforço mútuo da mesmidade e da diferença para se canibalizarem uma ŕ outra e assim proclamarem o ęxito do sequestro as duas ideias gémeas do Iluminismo, o universal triunfante e particular resistente” (1997: 43).

Um outro tema central na discussăo sobre as dimensőes culturais da globalizaçăo – relacionado, aliás, com o debate anterior – diz respeito ŕ questăo de saber se terá emergido nas décadas mais recentes uma cultura global (Featherstone, 1990; Waters, 1995). É há muito reconhecido que, pelo menos desde o século XVI, a hegemonia ideológica da cięncia, da economia, da política e da religiăo europeias produziu, através do imperialismo cultural, alguns isomorfismos entre as diferentes culturas nacionais do sistema mundial. A questăo é, agora, de saber se, para além disso, certas formas culturais terăo emergido nas décadas mais recentes, que săo originalmente transnacionais ou cujas origens nacionais săo relativamente irrelevantes pelo facto de circularem pelo mundo mais ou menos desenraizadas das culturas nacionais. Tais formas culturais săo identificadas por Appadurai como mediascapes e ideoscapes (1990), por Leslie Sklair (1991) como cultura-ideologia do consumismo, por Anthony Smith como um novo imperialismo cultural (1990). De uma outra perspectiva, a teoria dos regimes internacionais tem vindo a canalizar a nossa atençăo para os processos de formaçăo de consenso ao nível mundial e para a emergęncia de uma ordem normativa global (Keohane e Nye, 1977; Keohane, 1985; Krasner, 1983; Haggard e Simmons, 1987). E ainda de outra perspectiva, a teoria da estrutura internacional acentua a forma como a cultura ocidental tem criado actores sociais e significados culturais por todo o mundo (Thomas et al, 1987).

A ideia de uma cultura global é, claramente, um dos principais projectos da modernidade. Como Stephen Toulmin brilhantemente demonstrou (1990), pode ser identificado desde Leibniz até Hegel e desde o século XVII até ao nosso século. A atençăo sociológica concedida a esta ideia nas últimas tręs décadas tem, contudo, uma base empírica específica. Acredita-se que a intensificaçăo dramática de fluxos transfronteiriços de bens, capital, trabalho, pessoas, ideias e informaçăo originou convergęncias, isomorfismos e hibridizaçőes entre as diferentes culturas nacionais, sejam elas estilos arquitectónicos, moda, hábitos alimentares ou consumo cultural de massas. Contudo, a maior parte dos autores sustenta que, apesar da sua importância, estes processos estăo longe de conduzirem a uma cultura global.

A cultura é por definiçăo um processo social construído sobre a intersecçăo entre o universal e o particular. Como salienta Wallerstein, “definir uma cultura é uma questăo de definir fronteiras” (1991a: 187). De modo convergente, Appadurai afirma que o cultural é o campo das diferenças, dos contrastes e das comparaçőes (1997: 12). Poderíamos até afirmar que a cultura é, em sua definiçăo mais simples, a luta contra a uniformidade. Os poderosos e envolventes processos de difusăo e imposiçăo de culturas, imperialisticamente definidos como universais, tęm sido confrontados, em todo o sistema mundial, por múltiplos e engenhosos processos de resistęncia, identificaçăo e indigenizaçăo culturais. Todavia, o tópico da cultura global tem tido o mérito de mostrar que a luta política em redor da homogeneizaçăo e da uniformizaçăo culturais transcendeu a configuraçăo territorial em que teve lugar desde o século XIX até muito recentemente, isto é, o Estado-naçăo.

A este respeito, os Estados-naçăo tęm tradicionalmente desempenhado um papel algo ambíguo. Enquanto, externamente, tęm sido os arautos da diversidade cultural, da autenticidade da cultura nacional, internamente, tęm promovido a homogeneizaçăo e a uniformidade, esmagando a rica variedade de culturas locais existentes no território nacional, através do poder da polícia, do direito, do sistema educacional ou dos meios de comunicaçăo social, e na maior parte das vezes por todos eles em conjunto. Este papel tem sido desempenhado com intensidade e eficácia muito variadas nos Estados centrais, periféricos e semiperiféricos e pode estar agora a mudar como parte das transformaçőes em curso na capacidade regulatória dos Estados-naçăo.

Sob as condiçőes da economia mundial capitalista e do sistema interestatal moderno, parece haver apenas espaço para as culturas globais parciais. Parcial, quer em termos dos aspectos da vida social que cobrem, quer das regiőes do mundo que abrangem. Smith, por exemplo, fala de uma “família de culturas” europeia, que consiste em motivos e tradiçőes políticas e culturais abrangentes e transnacionais (o direito romano, o humanismo renascentista, o racionalismo iluminista, o romantismo e a democracia), “que emergiram em diversas partes do continente em diferentes períodos, continuando em alguns casos a emergir, criando ou recriando sentimentos de reconhecimento e parentesco entre os povos da Europa” (1990: 187). Vista de fora da Europa, particularmente a partir de regiőes e de povos intensivamente colonizados pelos europeus, esta família de culturas é a versăo quintessencial do imperialismo ocidental em nome do qual muita da tradiçăo e da identidade cultural foi destruída.

Dada a natureza hierárquica do sistema mundial, torna-se crucial identificar os grupos, as classes, os interesses e os Estados que definem as culturas parciais enquanto culturas globais, e que, por essa via, controlam a agenda da dominaçăo política sob o disfarce da globalizaçăo cultural. Se é verdade que a intensificaçăo dos contactos e da interdependęncia transfronteiriços abriu novas oportunidades para o exercício da tolerância, do ecumenismo, da solidariedade e do cosmopolitismo, năo é menos verdade que, simultaneamente, tęm surgido novas formas e manifestaçőes de intolerância, chauvinismo, de racismo, de xenofobia e, em última instância, de imperialismo. As culturas globais parciais podem, desta forma, ter naturezas, alcances e perfis políticos muito diferentes.

Nas actuais circunstâncias, só é possível visualizar culturas globais pluralistas ou plurais.7É por isso que a maior parte dos autores assume uma postura prescritiva ou prospectiva sempre que fala de cultura global no singular. Para Hannerz, o cosmopolitismo “inclui uma postura favorável ŕ coexistęncia de culturas distintas na experięncia individual… uma orientaçăo, uma vontade de interagir com o Outro… uma postura estética e intelectual de abertura face a experięncias culturais divergentes” (1990: 239). Chase-Dunn, por seu lado, enquanto retira do pedestal o “universalismo normativo” de Parsons (1971) como um traço essencial do sistema capitalista mundial vigente, propőe que tal universalismo seja transposto para “um novo nível de sentido socialista, embora sensível ŕs virtudes do pluralismo nacional e étnico” (1991: 105; Chase-Dunn et al, 1998). Por fim, Wallerstein imagina uma cultura mundial somente num mundo libertário-igualitário futuro, mas mesmo aí haveria um lugar reservado para a resistęncia cultural: a criaçăo e a recriaçăo constantes de entidades culturais particularistas “cujos objectos (reconhecidos ou năo) seriam a restauraçăo da realidade universal de liberdade e igualdade” (1991a: 199).

No domínio cultural, o consenso neoliberal é muito selectivo. Os fenómenos culturais só lhe interessam na medida em que se tornam mercadorias que como tal devem seguir o trilho da globalizaçăo económica. Assim, o consenso diz, sobretudo, respeito aos suportes técnicos e jurídicos da produçăo e circulaçăo dos produtos das indústrias culturais como, por exemplo, as tecnologias de comunicaçăo e da informaçăo e os direitos de propriedade intelectual.

6. A natureza das globalizaçőes

A referęncia feita nas secçőes anteriores ŕs facetas dominantes do que usualmente se designa por globalizaçăo, além de ser omissa a respeito da teoria da globalizaçăo que lhe subjaz, pode dar a ideia falsa de que a globalizaçăo é um fenómeno linear, monolítico e inequívoco. Esta ideia da globalizaçăo, apesar de falsa, é hoje prevalecente e tende a sę-lo tanto mais quanto a globalizaçăo extravasa do discurso científico para o discurso político e para a linguagem comum. Aparentemente transparente e sem complexidade, a ideia de globalizaçăo obscurece mais do que esclarece o que se passa no mundo. E o que obscurece ou oculta é, quando visto de outra perspectiva, tăo importante que a transparęncia e simplicidade da ideia de globalizaçăo, longe de serem inocentes, devem ser considerados dispositivos ideológicos e políticos dotados de intencionalidades específicas. Duas dessas intencionalidades devem ser salientadas.

A primeira é o que designo por falácia do determinismo. Consiste na inculcaçăo da ideia de que a globalizaçăo é um processo espontâneo, automático, inelutável e irreversível que se intensifica e avança segundo uma lógica e uma dinâmica próprias suficientemente fortes para se imporem a qualquer interferęncia externa. Nesta falácia incorrem năo só os embaixadores da globalizaçăo como os estudiosos mais circunspectos. Entre estes últimos, saliento Manuel Castells para quem a globalizaçăo é o resultado inelutável da revoluçăo nas tecnologias da informaçăo. Segundo ele, a “nova economia é informacional porque a produtividade e competitividade assentam na capacidade para gerar e aplicar eficientemente informaçăo baseada em conhecimento” e é global porque as actividades centrais da produçăo, da distribuiçăo e do consumo săo organizadas ŕ escala mundial (1996: 66). A falácia consiste em transformar as causas da globalizaçăo em efeitos da globalizaçăo. A globalizaçăo resulta, de facto, de um conjunto de decisőes políticas identificadas no tempo e na autoria. O Consenso de Washington é uma decisăo política dos Estados centrais como săo políticas as decisőes dos Estados que o adoptaram com mais ou menos autonomia, com mais ou menos selectividade. Năo podemos esquecer que, em grande medida, e sobretudo ao nível económico e político, a globalizaçăo hegemónica é um produto de decisőes dos Estados nacionais. A desregulamentaçăo da economia, por exemplo, tem sido um acto eminentemente político. A prova disso mesmo está na diversidade das respostas dos Estados nacionais ŕs pressőes políticas decorrentes do Consenso de Washington.8
O facto de as decisőes políticas terem sido, em geral, convergentes, tomadas durante um período de tempo curto, e de muitos Estados năo terem tido alternativa para decidirem de modo diferente, năo elimina o carácter político das decisőes, apenas desloca o centro e o processo político destas. Igualmente política é reflexăo sobre as novas formas de Estado que estăo a emergir em resultado da globalizaçăo, sobre a nova distribuiçăo política entre práticas nacionais, práticas internacionais e práticas globais, sobre o novo formato das políticas públicas em face da crescente complexidade das questőes sociais, ambientais e de redistribuiçăo.

A segunda intencionalidade política do carácter năo-político da globalizaçăo é a falácia do desaparecimento do Sul. Nos termos desta falácia as relaçőes Norte/Sul nunca constituíram um verdadeiro conflito, mas durante muito tempo os dois pólos das relaçőes foram facilmente identificáveis, já que o Norte produzia produtos manufacturados, enquanto o Sul fornecia matérias primas. A situaçăo começou-se a alterar na década de sessenta (deram conta disso as teorias da dependęncia ou do desenvolvimento dependente) e transformou-se radicalmente a partir da década de oitenta. Hoje, quer ao nível financeiro, quer ao nível da produçăo, quer ainda ao nível do consumo, o mundo está integrado numa economia global onde, perante a multiplicidade de interdependęncias, deixou de fazer sentido distinguir entre Norte e Sul e, aliás, igualmente entre centro, periferia e semiperiferia do sistema mundial. Quanto mais triunfalista é a concepçăo da globalizaçăo menor é a visibilidade do Sul ou das hierarquias do sistema mundial. A ideia é que a globalizaçăo está a ter um impacto uniforme em todas as regiőes do mundo e em todos os sectores de actividade e que os seus arquitectos, as empresas multinacionais, săo infinitamente inovadoras e tęm capacidade organizativa suficiente para transformar a nova economia global numa oportunidade sem precedentes.

Mesmo os autores que reconhecem que a globalizaçăo é altamente selectiva, produz assimetrias e tem uma geometria variável, tendem a pensar que ela desestruturou as hierarquias da economia mundial anterior. É de novo o caso de Castells para quem a globalizaçăo pôs fim ŕ ideia de “Sul” e mesmo ŕ ideia de “Terceiro Mundo”, na medida em que é cada vez maior a diferenciaçăo entre países e no interior de países, entre regiőes (1996: 92, 112). Segundo ele, a novíssima divisăo internacional do trabalho năo ocorre entre países, mas entre agentes económicos e entre posiçőes distintas na economia global que competem globalmente, usando a infraestrutura tecnológica da economia informacional e a estrutura organizacional de redes e fluxos (1996: 147). Neste sentido, deixa igualmente de fazer sentido a distinçăo entre centro, periferia e semiperiferia no sistema mundial. A nova economia é uma economia global distinta da economia-mundo. Enquanto esta última assentava na acumulaçăo de capital, obtida em todo o mundo, a economia global tem a capacidade para funcionar como uma unidade em tempo real e ŕ escala planetária (1996: 92).

Sem querer minimizar a importância das transformaçőes em curso, penso, no entanto, que Castells leva longe demais a imagem da globalizaçăo como o bulldozer avassalador contra o qual năo há resistęncia possível, pelo menos a nível económico. E com isso leva longe de mais a ideia da segmentaçăo dos processos de inclusăo/exclusăo que estăo a ocorrer. Em primeiro lugar, é o próprio Castells quem reconhece que os processos de exclusăo podem atingir um continente por inteiro (África) e dominar inteiramente sobre os processos de inclusăo num subcontinente (a América Latina) (1996: 115-136). Em segundo lugar, mesmo admitindo que a economia global deixou de necessitar dos espaços geo-políticos nacionais para se reproduzir, a verdade é que a dívida externa continua a ser contabilizada e cobrada ao nível de países e é por via dela e da financeirizaçăo do sistema económico que os países pobres do mundo se transformaram, a partir da década de oitenta, em contribuintes líquidos para a riqueza dos países ricos. Em terceiro lugar, ao contrário do que se pode depreender do quadro traçado por Castells, a convergęncia entre países na economia global é tăo significativa quanto a divergęncia e isto é particularmente notório entre os países centrais (Drache, 1999: 15). Porque as políticas de salários e de segurança social continuaram a ser definidas a nível nacional, as medidas de liberalizaçăo desde a década de oitenta năo reduziram significativamente as diferenças nos custos do trabalho entre os diferentes países. Assim, em 1997, a remuneraçăo média da hora de trabalho na Alemanha (32$ US) era 54% mais elevada que nos EUA (17.19$ US). E mesmo dentro da Uniăo Europeia, onde tęm estado em curso nas últimas décadas políticas de “integraçăo profunda”, as diferenças de produtividade e de custos salariais tęm-se mantido com a excepçăo da Inglaterra, em que os custos salariais foram reduzidos em 40% desde 1980. Tomando a Alemanha Ocidental como termo de comparaçăo (100%), a produtividade do trabalho em Portugal era, em 1998, 34,5% e os custos salariais, 37,4%. Estes números eram para a Espanha, 62% e 66,9%, respectivamente; para a Inglaterra, 71,7% e 68%; e para a Irlanda, 69,5 e 71,8% (Drache, 1999: 24). Por último, é difícil sustentar que a selectividade e a fragmentaçăo excludente da “nova economia” destruiu o conceito de “Sul” quando, como vimos atrás, a disparidade de riqueza entre países pobres e países ricos năo cessou de aumentar nos últimos vinte ou trinta anos. É certo que a liberalizaçăo dos mercados desestruturou os processos de inclusăo e de exclusăo nos diferentes países e regiőes. Mas o importante é analisar em cada país ou regiăo a ratio entre inclusăo e exclusăo. É essa ratio que determina se um país pertence ao Sul ou ao Norte, ao centro ou ŕ periferia ou semiperiferia do sistema mundial. Os países onde a integraçăo na economia mundial se processou dominantemente pela exclusăo săo os países do Sul e da periferia do sistema mundial.

Estas transformaçőes merecem uma atençăo detalhada, mas năo restam dúvidas de que só as viragens ideológicas que ocorreram na comunidade científica, tanto no Norte como no Sul, podem explicar que as iniquidades e assimetrias no sistema mundial, apesar de terem aumentado, tenham perdido centralidade analítica. Por isso, o “fim do Sul”, o “desaparecimento do Terceiro Mundo” săo, acima de tudo, um produto das mudanças de “sensibilidade sociológica” que devem ser, elas próprias, objecto de escrutínio. Em alguns autores, o fim do Sul ou do Terceiro Mundo năo resulta de análises específicas sobre o Sul ou o Terceiro Mundo, resulta tăo-só do “esquecimento” a que estes săo votados. A globalizaçăo é vista a partir dos países centrais tendo em vista as realidades destes. É assim, muito particularmente, o caso dos autores que se centram na globalizaçăo económica.9 Mas as análises culturalistas incorrem frequentemente no mesmo erro. A título de exemplo, as teorias da reflexividade aplicadas ŕ modernidade, ŕ globalizaçăo ou ŕ acumulaçăo (Beck, 1992; Giddens, 1991; Lash e Urry, 1996) e, em particular, a ideia de Giddens de que a globalizaçăo é a “modernizaçăo reflexiva”, esquecem que a grande maioria da populaçăo mundial sofre as consequęncias de uma modernidade ou de uma globalizaçăo nada reflexiva ou que a grande maioria dos operários vivem em regimes de acumulaçăo que estăo nos antípodas da acumulaçăo reflexiva.

Tanto a falácia do determinismo como a falácia do desaparecimento do Sul tęm vindo a perder credibilidade ŕ medida que a globalizaçăo se transforma num campo de contestaçăo social e política. Se para alguns ela continua a ser considerada como o grande triunfo da racionalidade, da inovaçăo e da liberdade capaz de produzir progresso infinito e abundância ilimitada, para outros ela é anátema já que no seu bojo transporta a miséria, a marginalizaçăo e a exclusăo da grande maioria da populaçăo mundial, enquanto a retórica do progresso e da abundância se torna em realidade apenas para um clube cada vez mais pequeno de privilegiados.
Nestas circunstâncias, năo admira que tenham surgido nos últimos anos vários discursos da globalizaçăo. Robertson (1998), por exemplo, distingue quatro grandes discursos da globalizaçăo. O discurso regional, como, por exemplo, o discurso asiático, o discurso europeu ocidental, ou o discurso latino-americano, tem uma tonalidade civilizacional, sendo a globalizaçăo posta em confronto com as especificidades regionais. Dentro da mesma regiăo, pode haver diferentes subdiscursos. Por exemplo, em França há uma forte tendęncia para ver na globalizaçăo uma ameaça “anglo-americana” ŕ sociedade e ŕ cultura francesa e ŕs de outros países europeus. Mas, como diz Robertson, o anti-globalismo dos franceses pode facilmente converter-se no projecto francęs de globalizaçăo. O discurso disciplinar diz respeito ao modo como a globalizaçăo é vista pelas diferentes cięncias sociais. O traço mais saliente deste discurso é a salięncia que é dada ŕ globalizaçăo económica. O discurso ideológicoentrecruza-se com qualquer dos anteriores e diz respeito ŕ avaliaçăo política dos processos de globalizaçăo. Ao discurso pro-globalizaçăo contrapőe-se o discurso anti-globalizaçăo e em qualquer deles é possível distinguir posiçőes de esquerda e de direita. Finalmente, o discurso feminista que, tendo começado por ser um discurso anti-globalizaçăo – privilegiando o local e atribuindo o global a uma preocupaçăo masculina -, é hoje também um discurso da globalizaçăo e distingue-se pela ęnfase dada aos aspectos comunitários da globalizaçăo.

A pluralidade de discursos sobre a globalizaçăo mostra que é imperioso produzir uma reflexăo teórica crítica da globalizaçăo e de o fazer de modo a captar a complexidade dos fenómenos que ela envolve e a disparidade dos interesses que neles se confrontam. A proposta teórica que apresento aqui parte de tręs aparentes contradiçőes que, em meu entender, conferem ao período histórico, em que nos encontramos, a sua especificidade transicional. A primeira contradiçăo é entre globalizaçăo e localizaçăo. O tempo presente surge-nos como dominado por um movimento dialéctico em cujo seio os processos de globalizaçăo ocorrem de par com processos de localizaçăo. De facto, ŕ medida que a interdependęncia e as interacçőes globais se intensificam, as relaçőes sociais em geral parecem estar cada vez mais desterritorializadas, abrindo caminho para novos direitos ŕs opçőes, que atravessam fronteiras até há pouco tempo policiadas pela tradiçăo, pelo nacionalismo, pela linguagem ou pela ideologia, e frequentemente por todos eles em conjunto. Mas, por outro lado, e em aparente contradiçăo com esta tendęncia, novas identidades regionais, nacionais e locais estăo a emergir, construídas em torno de uma nova proeminęncia dos direitos ŕs raízes. Tais localismos, tanto se referem a territórios reais ou imaginados, como a formas de vida e de sociabilidade assentes nas relaçőes face-a-face, na proximidade e na interactividade.

Localismos territorializados săo, por exemplo, os protagonizados por povos que, ao fim de séculos de genocídio e de opressăo cultural, reivindicam, finalmente com algum ęxito, o direito ŕ autodeterminaçăo dentro dos seus territórios ancestrais. É este o caso dos povos indígenas da América Latina e também da Austrália, do Canadá e da Nova Zelândia. Por seu lado, os localismos translocalizados săo protagonizados por grupos sociais translocalizados, tais como os imigrantes árabes em Paris ou Londres, os imigrantes turcos na Alemanha ou os imigrantes latinos nos EUA. Para estes grupos, o território é a ideia de território, enquanto forma de vida em escala de proximidade, imediaçăo, pertença, partilha e reciprocidade. Aliás, esta reterritorializaçăo, que usualmente ocorre a um nível infra-estatal, pode também ocorrer a um nível supra-estatal. Um bom exemplo deste último processo é a Uniăo Europeia, que, ao mesmo tempo que desterritorializa as relaçőes sociais entre os cidadăos dos Estados membros, reterritorializa as relaçőes sociais com Estados terceiros (a “Europa-fortaleza”).

A segunda contradiçăo é entre o Estado-naçăo e o năo-Estado transnacional. A análise precedente sobre as diferentes dimensőes da globalizaçăo dominante mostrou que um dos pontos de maior controvérsia, nos debates sobre a globalizaçăo, é a questăo do papel do Estado na era da globalizaçăo. Se, para uns, o Estado é uma entidade obsoleta e em vias de extinçăo ou, em qualquer caso, muito fragilizada na sua capacidade para organizar e regular a vida social, para outros, o Estado continua a ser a entidade política central, năo só porque a erosăo da soberania é muito selectiva, como, sobretudo, porque a própria institucionalidade da globalizaçăo – das agęncias financeiras multilaterais ŕ desregulaçăo da economia – é criada pelos Estados nacionais. Cada uma destas posiçőes capta uma parte dos processos em curso. Nenhuma delas, porém, faz justiça ŕs transformaçőes no seu conjunto porque estas săo, de facto, contraditórias e incluem tanto processos de estatizaçăo – a tal ponto que se pode afirmar que os Estados nunca foram tăo importantes como hoje – como processos de desestatizaçăo em que interacçőes, redes e fluxos transnacionais da maior importância ocorrem sem qualquer interferęncia significativa do Estado, ao contrário do que sucedia no período anterior.

A terceira contradiçăo, de natureza político-ideológica, é entre os que vęem na globalizaçăo a energia finalmente incontestável e imbatível do capitalismo e os que vęem nela uma oportunidade nova para ampliar a escala e o âmbito da solidariedade transnacional e das lutas anticapitalistas. A primeira posiçăo é, aliás, defendida, tanto pelos que conduzem a globalizaçăo e dela beneficiam, como por aqueles para quem a globalizaçăo é a mais recente e a mais virulenta agressăo externa contra os seus modos de vida e o seu bem estar.

Estas tręs contradiçőes condensam os vectores mais importantes dos processos de globalizaçăo em curso. Ŕ luz delas, é fácil ver que as disjunçőes, as ocorręncias paralelas e as confrontaçőes săo de tal modo significativas que o que designamos por globalizaçăo é, de facto, uma constelaçăo de diferentes processos de globalizaçăo e, em última instância, de diferentes e, por vezes, contraditórias, globalizaçőes.

Aquilo que habitualmente designamos por globalizaçăo săo, de facto, conjuntos diferenciados de relaçőes sociais; diferentes conjuntos de relaçőes sociais dăo origem a diferentes fenómenos de globalizaçăo. Nestes termos, năo existe estritamente uma entidade única chamada globalizaçăo; existem, em vez disso, globalizaçőes; em rigor, este termo só deveria ser usado no plural. Qualquer conceito mais abrangente deve ser de tipo processual e năo substantivo. Por outro lado, enquanto feixes de relaçőes sociais, as globalizaçőes envolvem conflitos e, por isso, vencedores e vencidos. Frequentemente, o discurso sobre globalizaçăo é a história dos vencedores contada pelos próprios. Na verdade, a vitória é aparentemente tăo absoluta que os derrotados acabam por desaparecer totalmente de cena. Por isso, é errado pensar que as novas e mais intensas interacçőes transnacionais produzidas pelos processos de globalizaçăo eliminaram as hierarquias no sistema mundial. Sem dúvida que as tęm vindo a transformar profundamente, mas isso năo significa que as tenham eliminado. Pelo contrário, a prova empírica vai no sentido oposto, no sentido da intensificaçăo das hierarquias e das desigualdades. As contradiçőes e disjunçőes acima assinaladas sugerem que estamos num período transicional no que respeita a tręs dimensőes principais: transiçăo no sistema de hierarquias e desigualdades do sistema mundial; transiçăo no formato institucional e na complementaridade entre instituiçőes; transiçăo na escala e na configuraçăo dos conflitos sociais e políticos.

A teoria a construir deve, pois, dar conta da pluralidade e da contradiçăo dos processos da globalizaçăo em vez de os tentar subsumir em abstracçőes redutoras. A teoria que a seguir proponho assenta no conceito de sistema mundial em transiçăo. Em transiçăo porque contém em si o sistema mundial velho, em processo de profunda transformaçăo, e um conjunto de realidades emergentes que podem ou năo conduzir a um novo sistema mundial, ou a outra qualquer entidade nova, sistémica ou năo. Trata-se de uma circunstância que, quando captada em corte sincrónico, revela uma total abertura quanto a possíveis alternativas de evoluçăo. Tal abertura é o sintoma de uma grande instabilidade que configura uma situaçăo de bifurcaçăo, entendida em sentido prigoginiano. É uma situaçăo de profundos desequilíbrios e de compromissos voláteis em que pequenas alteraçőes podem produzir grandes transformaçőes. Trata-se, pois, de uma situaçăo caracterizada pela turbulęncia e pela explosăo das escalas.10 A teoria que aqui proponho pretende dar conta da situaçăo de bifurcaçăo e, como tal, năo pode deixar de ser, ela própria, uma teoria aberta ŕs possibilidades de caos.

O sistema mundial em transiçăo é constituído por tręs constelaçőes de práticas colectivas: a constelaçăo de práticas interestatais, a constelaçăo de práticas capitalistas globais e a constelaçăo de práticas sociais e culturais transnacionais. As práticas interestatais correspondem ao papel dos Estados no sistema mundial moderno enquanto protagonistas da divisăo internacional do trabalho no seio do qual se estabelece a hierarquia entre centro, periferia e semiperiferia. As práticas capitalistas globais săo as práticas dos agentes económicos cuja unidade espácio-temporal de actuaçăo real ou potencial é o planeta. As práticas sociais e culturais transnacionais săo os fluxos transfronteiriços de pessoas e de culturas, de informaçăo e de comunicaçăo. Cada uma destas constelaçőes de práticas é constituída por: um conjunto de instituiçőes que asseguram a sua reproduçăo, a complementaridade entre elas e a estabilidade das desigualdades que elas produzem; uma forma de poder que fornece a lógica das interacçőes e legitima as desigualdades e as hierarquias; uma forma de direito que fornece a linguagem das relaçőes intrainstitucionais e interinstitucionais e o critério da divisăo entre práticas permitidas e proibidas; um conflito estrutural que condensa as tensőes e contradiçőes matriciais das práticas em questăo; um critério de hierarquizaçăo que define o modo como se cristalizam as desigualdades de poder e os conflitos em que eles se traduzem; finalmente, ainda que todas as práticas do sistema mundial em transiçăo estejam envolvidas em todos os modos de produçăo de globalizaçăo , nem todas estăo envolvidas em todos eles com a mesma intensidade.

O quadro nş 1 descreve a composiçăo interna de cada um dos componentes das diferentes constelaçőes de práticas. Detenho-me apenas nos que exigem uma explicaçăo. Antes disso, porém, é necessário identificar o que distingue o sistema mundial em transiçăo (SMET) do sistema mundial moderno (SMM). Em primeiro lugar, enquanto o SMM assenta em dois pilares, a economia-mundo e o sistema interestatal, o SMET assenta em tręs pilares e nenhum deles tem a consistęncia de um sistema. Trata-se antes de constelaçőes de práticas cuja coeręncia interna é intrinsecamente problemática. A maior complexidade (e também incoeręncia) do sistema mundial em transiçăo reside em que nele os processos da globalizaçăo văo muito para além dos Estados e da economia, envolvendo práticas sociais e culturais que no SMM estavam confinadas aos Estados e sociedades nacionais ou sub-unidades deles. Aliás, muitas das novas práticas culturais transnacionais săo
originariamente transnacionais, ou seja, constituem-se livres da referęncia a uma naçăo ou a um Estado concretos ou, quando recorrem a eles, fazem-no apenas para obter matéria prima ou infraestrutura local para a produçăo de transnacionalidade. Em segundo lugar, as interacçőes entre os pilares do SMET săo muito mais intensas que no SMM. Aliás, enquanto no SMM os dois pilares tinham contornos claros e bem distintos, no SMET há uma interpenetraçăo constante e intensa entre as diferentes constelaçőes de práticas, de tal modo que entre elas há zonas cinzentas ou híbridas onde as constelaçőes assumem um carácter particularmente compósito. Por exemplo, a Organizaçăo Mundial do Comércio é uma instituiçăo híbrida constituída por práticas interestatais e por práticas capitalistas globais do mesmo modo que os fluxos migratórios săo uma instituiçăo híbrida onde, em graus diferentes, consoante as situaçőes, estăo presentes as tręs constelaçőes de práticas. Em terceiro lugar, ainda que permaneçam no SMET muitas das instituiçőes centrais do SMM, elas desempenham hoje funçőes diferentes sem que a sua centralidade seja necessariamente afectada. Assim, o Estado, que no SMM assegurava a integraçăo da economia, da sociedade e da cultura nacionais, contribui hoje activamente para a desintegraçăo da economia, da sociedade e da cultura a nível nacional em nome da integraçăo destas na economia, na sociedade e na cultura globais.

Os processos de globalizaçăo resultam das interacçőes entre as tręs constelaçőes de práticas. As tensőes e contradiçőes, no interior de cada uma das constelaçőes e nas relaçőes entre elas, decorrem das formas de poder e das desigualdades na distribuiçăo do poder. Essa forma de poder é a troca desigual em todas elas, mas assume formas específicas em cada uma das constelaçőes que derivam dos recursos, artefactos, imaginários que săo objecto de troca desigual. O aprofundamento e a intensidade das interacçőes interestatais, globais e transnacionais faz com que as formas de poder se exerçam como trocas desiguais. Porque se trata de trocas e as desigualdades podem, dentro de certos limites, ser ocultadas ou manipuladas, o registo das interacçőes no SMET assume muitas vezes (e credivelmente) o registo da horizontalidade através de ideias-força como interdependęncia, complementaridade, coordenaçăo, cooperaçăo, rede, etc. Em face disto, os conflitos tendem a ser experienciados como difusos, sendo por vezes difícil definir o que está em conflito ou quem está em conflito. Mesmo assim é possível identificar em cada constelaçăo de práticas um conflito estrutural, ou seja, um conflito que organiza as lutas em torno dos recursos que săo objecto de trocas desiguais. No caso de práticas interestatais, o conflito trava-se em torno da posiçăo relativa na hierarquia do sistema mundial já que é este que dita o tipo de trocas e graus de desigualdades. As lutas pela promoçăo ou contra a despromoçăo e os movimentos na hierarquia do sistema mundial em que se traduzem săo processos de longa duraçăo que em cada momento se cristalizam em graus de autonomia e de dependęncia. Ao nível das práticas capitalistas globais, a luta trava-se entre a classe capitalista global e todas as outras classes definidas a nível nacional, sejam elas a burguesia, a pequena burguesia e o operariado. Obviamente, os graus de desigualdade da troca e os mecanismos que as produzem săo diferentes consoante as classes em confronto, mas em todos os casos trava-se uma luta pela apropriaçăo ou valorizaçăo de recursos mercantis, sejam eles o trabalho ou o conhecimento, a informaçăo ou as matérias primas, o crédito ou a tecnologia. O que resta das burguesias nacionais e a pequena burguesia săo, nesta fase de transiçăo, a almofada que amortece e a cortina de fumo que obscurece a contradiçăo cada vez mais nua e crua entre o capital global e o trabalho entretanto transformado em recurso global.

No domínio das práticas sociais e culturais transnacionais, as trocas desiguais dizem respeito a recursos năo-mercantis cuja transnacionalidade assenta na diferença local, tais como, etnias, identidades, culturas, tradiçőes, sentimentos de pertença, imaginários, rituais, literatura escrita ou oral. Săo incontáveis os grupos sociais envolvidos nestas trocas desiguais e as suas lutas travam-se em torno do reconhecimento da apropriaçăo ou da valorizaçăo năo mercantil desses recursos, ou seja, em torno da igualdade na diferença e da diferença na igualdade.

A interacçăo recíproca e interpenetraçăo das tręs constelaçőes de práticas faz com que os tręs tipos de conflitos estruturais e as trocas desiguais que os alimentam se traduzam na prática em conflitos compósitos, híbridos ou duais em que, de diferentes formas, estăo presentes elementos de cada um dos conflitos estruturais. A importância deste facto está no que designo por transconflitualidade, que consiste em assimilar um tipo de conflito a outro e em experienciar um conflito de certo tipo como se ele fosse de outro tipo. Assim, por exemplo, um conflito no interior das práticas capitalistas globais pode ser assimilado a um conflito interestatal e ser vivido como tal pelas partes em conflito. Do mesmo modo, um conflito interestatal pode ser assimilado a um conflito de práticas culturais transnacionais e ser vivido como tal. A transconflitualidade é reveladora da abertura e da situaçăo de bifurcaçăo que caracterizam o SMET porque, ŕ partida, năo é possível saber em que direcçăo se orienta a transconflitualidade. No entanto, a direcçăo que acaba por se impor é decisiva, năo só para definir o perfil prático do conflito, como o seu âmbito e o seu resultado.

Sugiro que, nas condiçőes presentes do SMET, a análise dos processos de globalizaçăo e das hierarquias que eles produzem seja centrada nos critérios que definem o global/local. Para além da justificaçăo acima dada, há uma outra que julgo importante e que se pode resumir no que designo por voracidade diferenciadora do global/local. No SMM a hierarquia entre centro, semiperiferia e periferia era articulável com uma série de dicotomias que derivavam de uma variedade de formas de diferenciaçăo desigual. Entre as formas de dicotomizaçăo, saliento: desenvolvido/subdesenvolvido, moderno/tradicional, superior/inferior, universal/particular, racional/irracional, industrial/agrícola, urbano/rural. Cada uma destas formas tinha um registo semântico próprio, uma tradiçăo intelectual, uma intencionalidade política e um horizonte projectivo. O que é novo no SMET é o modo como a dicotomia global/local tem vindo a absorver todas as outras, năo só no discurso científico como no discurso político.

O global e o local săo socialmente produzidos no interior dos processos de globalizaçăo. Distingo quatro processos de globalizaçăo produzidos por outros tantos modos de globalizaçăo. Eis a minha definiçăo de modo de produçăo de globalizaçăo: é o conjunto de trocas desiguais pelo qual um determinado artefacto, condiçăo, entidade ou identidade local estende a sua influęncia para além das fronteiras nacionais e, ao fazę-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outro artefacto, condiçăo, entidade ou identidade rival.

As implicaçőes mais importantes desta concepçăo săo as seguintes. Em primeiro lugar, perante as condiçőes do sistema mundial em transiçăo năo existe globalizaçăo genuína; aquilo a que chamamos globalizaçăo é sempre a globalizaçăo bem sucedida de determinado localismo. Por outras palavras, năo existe condiçăo global para a qual năo consigamos encontrar uma raiz local, real ou imaginada, uma inserçăo cultural específica. A segunda implicaçăo é que a globalizaçăo pressupőe a localizaçăo. O processo que cria o global, enquanto posiçăo dominante nas trocas desiguais, é o mesmo que produz o local, enquanto posiçăo dominada e, portanto, hierarquicamente inferior. De facto, vivemos tanto num mundo de localizaçăo como num mundo de globalizaçăo. Portanto, em termos analíticos, seria igualmente correcto se a presente situaçăo e os nossos tópicos de investigaçăo se definissem em termos de localizaçăo, em vez de globalizaçăo. O motivo por que é preferido o último termo é, basicamente, o facto de o discurso científico hegemónico tender a privilegiar a história do mundo na versăo dos vencedores. Năo é por acaso que o livro de Benjamim Barber, sobre as tensőes no processo de globalizaçăo, se intitula Jihad versus McWorl (1995) e năo MacWorld versus Jihad.

Existem muitos exemplos de como a globalizaçăo pressupőe a localizaçăo. A língua inglesa enquanto é um desses exemplos. A sua propagaçăo enquanto língua global implicou a localizaçăo de outras línguas potencialmente globais, nomeadamente a língua francesa. Quer isto dizer que, uma vez identificado determinado processo de globalizaçăo, o seu sentido e explicaçăo integrais năo podem ser obtidos sem se ter em conta os processos adjacentes de relocalizaçăo com ele ocorrendo em simultâneo ou sequencialmente. A globalizaçăo do sistema de estrelato de Hollywood contribuiu para a localizaçăo (etnicizaçăo) do sistema de estrelato do cinema hindu. Analogamente, os actores franceses ou italianos dos anos 60 – de Brigitte Bardot a Alain Delon, de Marcello Mastroianni a Sophia Loren – que simbolizavam entăo o modo universal de representar, parecem hoje, quando revemos os seus filmes, provincianamente europeus, se năo mesmo curiosamente étnicos. A diferença do olhar reside em que, de entăo para cá, o modo de representar hollywoodesco conseguiu globalizar-se. Para dar um exemplo de uma área totalmente diferente, ŕ medida que se globaliza o hamburger ou a pizza, localiza-se o bolo de bacalhau portuguęs ou a feijoada brasileira, no sentido em que serăo cada vez mais vistos como particularismos típicos da sociedade portuguesa ou brasileira.

Uma das transformaçőes mais frequentemente associadas aos processos de globalizaçăo é a compressăo tempo-espaço, ou seja, o processo social pelo qual os fenómenos se aceleram e se difundem pelo globo (Harvey, 1989). Ainda que aparentemente monolítico, este processo combina situaçőes e condiçőes altamente diferenciadas e, por esse motivo, năo pode ser analisado independentemente das relaçőes de poder que respondem pelas diferentes formas de mobilidade temporal e espacial. Por um lado, existe a classe capitalista global, aquela que realmente controla a compressăo tempo-espaço e que é capaz de a transformar a seu favor. Existem, por outro lado, as classes e grupos subordinados, como os trabalhadores migrantes e os refugiados, que nas últimas décadas tęm efectuado bastante movimentaçăo transfronteiriça, mas que năo controlam, de modo algum, a compressăo tempo-espaço. Entre os executivos das empresas multinacionais e os emigrantes e refugiados, os turistas representam um terceiro modo de produçăo da compressăo tempo-espaço.

Existem ainda os que contribuem fortemente para a globalizaçăo mas, năo obstante, permanecem prisioneiros do seu tempo-espaço local. Os camponeses da Bolívia, do Perú e da Colômbia, ao cultivarem coca, contribuem decisivamente para uma cultura mundial da droga, mas eles próprios permanecem “localizados” nas suas aldeias e montanhas como desde sempre estiveram. Tal como os moradores das favelas do Rio, que permanecem prisioneiros da vida urbana marginal, enquanto as suas cançőes e as suas danças, sobretudo o samba, constituem hoje parte de uma cultura musical globalizada.

Ainda noutra perspectiva, a competęncia global requer, por vezes, o acentuar da especificidade local. Muitos dos lugares turísticos de hoje tęm de vincar o seu carácter exótico, vernáculo e tradicional para poderem ser suficientemente atractivos no mercado global de turismo.

A produçăo de globalizaçăo implica, pois, a produçăo de localizaçăo. Longe de se tratar de produçőes simétricas, é por via delas que se estabelece a hierarquizaçăo dominante no SMET. Nos seus termos, o local é integrado no global por duas vias possíveis: pela exclusăo ou pela inclusăo subalterna. Apesar de, na linguagem comum e no discurso político, o termo globalizaçăo transmitir a ideia de inclusăo, o âmbito real da inclusăo pela globalizaçăo, sobretudo económica, pode ser bastante limitado. Vastas populaçőes do mundo, sobretudo em África, estăo a ser globalizadas em termos do modo específico por que estăo a ser excluídas pela globalizaçăo hegemónica.11 O que caracteriza a produçăo de globalizaçăo é o facto de o seu impacto se estender tanto ŕs realidades que inclui como ŕs realidades que exclui. Mas o decisivo na hierarquia produzida năo é apenas o âmbito da inclusăo, mas a sua natureza. O local, quando incluído, é-o de modo subordinado, segundo a lógica do global. O local que precede os processos de globalizaçăo, ou que consegue permanecer ŕ margem, tem muito pouco a ver com o local que resulta da produçăo global da localizaçăo. Aliás, o primeiro tipo de local está na origem dos processos de globalizaçăo, enquanto o segundo tipo é o resultado da operaçăo destes.

O modo de produçăo geral de globalizaçăo desdobra-se em quatro modos de produçăo, os quais, em meu entender, dăo origem a quatro formas de globalizaçăo.

A primeira forma de globalizaçăo é o localismo globalizado. Consiste no processo pelo qual determinado fenómeno local é globalizado com sucesso, seja a actividade mundial das multinacionais, a transformaçăo da língua inglesa em lingua franca, a globalizaçăo do fast food americano ou da sua música popular, ou a adopçăo mundial das mesmas leis de propriedade intelectual, de patentes ou de telecomunicaçőes promovida agressivamente pelos EUA. Neste modo de produçăo de globalizaçăo o que se globaliza é o vencedor de uma luta pela apropriaçăo ou valorizaçăo de recursos ou pelo reconhecimento da diferença. A vitória traduz-se na faculdade de ditar os termos da integraçăo, da competiçăo e da inclusăo. No caso do reconhecimento da diferença, o localismo globalizado implica a conversăo da diferença vitoriosa em condiçăo universal e a consequente exclusăo ou inclusăo subalterna de diferenças alternativas.

Ŕ segunda forma de globalizaçăo chamo globalismo localizado. Consiste no impacto específico nas condiçőes locais produzido pelas práticas e imperativos transnacionais que decorrem dos localismos globalizados. Para responder a esses imperativos transnacionais, as condiçőes locais săo desintegradas, desestruturadas e, eventualmente, reestruturadas sob a forma de inclusăo subalterna. Tais globalismos localizados incluem: a eliminaçăo do comércio de proximidade; criaçăo de enclaves de comércio livre ou zonas francas; desflorestaçăo e destruiçăo maciça dos recursos naturais para pagamento da dívida externa; uso turístico de tesouros históricos, lugares ou cerimónias religiosos, artesanato e vida selvagem; dumping ecológico (“compra” pelos países do Terceiro Mundo de lixos tóxicos produzidos nos países capitalistas centrais para gerar divisas externas); conversăo da agricultura de subsistęncia em agricultura para exportaçăo como parte do “ajustamento estrutural”; etnicizaçăo do local de trabalho (desvalorizaçăo do salário pelo facto de os trabalhadores serem de um grupo étnico considerado “inferior” ou “menos exigente”).12

Estes dois modos de produçăo de globalizaçăo operam em conjunçăo, mas devem ser tratados separadamente dado que os factores, os agentes e os conflitos que intervęm num e noutro săo distintos. A produçăo sustentada de localismos globalizados e de globalismos localizados é cada vez mais determinante para a hierarquizaçăo específica das práticas interestatais. A divisăo internacional da produçăo da globalizaçăo tende a assumir o seguinte padrăo: os países centrais especializam-se em localismos globalizados, enquanto aos países periféricos cabe tăo-só a escolha de globalismos localizados. Os países semiperiféricos săo caracterizados pela coexistęncia de localismos globalizados e de globalismos localizados e pelas tensőes entre eles. O sistema mundial em transiçăo é uma trama de globalismos localizados e localismos globalizados.

Para além destes dois modos de produçăo de globalizaçăo há outros dois, talvez os que melhor definem as diferenças e a novidade do SMET em relaçăo ao SMM porque ocorrem no interior da constelaçăo das práticas que irrompeu com particular pujança nas últimas décadas – as práticas sociais e culturais transnacionais -, ainda que se repercutam nas restantes constelaçőes de práticas. Dizem respeito ŕ globalizaçăo da resistęncia aos localismos globalizados e aos globalismos localizados. Designo o primeiro por cosmopolitismo. Trata da organizaçăo transnacional da resistęncia de Estados-naçăo, regiőes, classes ou grupos sociais vitimizados pelas trocas desiguais de que se alimentam os localismos globalizados e os globalismos localizados, usando em seu benefício as possibilidades de interacçăo transnacional criadas pelo sistema mundial em transiçăo, incluindo as que decorrem da revoluçăo nas tecnologias de informaçăo e de comunicaçăo. A resistęncia consiste em transformar trocas desiguais em trocas de autoridade partilhada, e traduz-se em lutas contra a exclusăo, a inclusăo subalterna, a dependęncia, a desintegraçăo, a despromoçăo. As actividades cosmopolitas incluem, entre muitas outras: movimentos e organizaçőes no interior das periferias do sistema mundial; redes de solidariedade transnacional năo desigual entre o Norte e o Sul; a articulaçăo entre organizaçőes operárias dos países integrados nos diferentes blocos regionais ou entre trabalhadores da mesma empresa multinacional operando em diferentes países (o novo internacionalismo operário); redes internacionais de assistęncia jurídica alternativa; organizaçőes transnacionais de direitos humanos; redes mundiais de movimentos feministas; organizaçőes năo governamentais (ONG’s) transnacionais de militância anticapitalista; redes de movimentos e associaçőes indígenas, ecológicas ou de desenvolvimento alternativo; movimentos literários, artísticos e científicos na periferia do sistema mundial em busca de valores culturais alternativos, năo imperialistas, contra-hegemónicos, empenhados em estudos sob perspectivas pós-coloniais ou subalternas. Pese embora a heterogeneidade dos movimentos e organizaçőes envolvidas, a contestaçăo ŕ Organizaçăo Mundial de Comércio aquando da sua reuniăo em Seattle, a 30 de Novembro de 1999, foi uma eloquente manifestaçăo do que designo por cosmopolitismo. Foi seguida por outras contestaçőes contra as instituiçőes financeiras da globalizaçăo hegemónica realizadas em Washington, Montreal, Genebra e Praga. O Fórum Social Mundial realizado em Porto Alegre em Janeiro de 2001 foi outra importante manifestaçăo de cosmopolitismo.

O uso do termo “cosmopolitismo” para descrever práticas e discursos de resistęncia, contra as trocas desiguais no sistema mundial tardio, pode parecer inadequado em face da sua ascendęncia modernista, tăo eloquentemente descrito por Toulmin (1990), bem como ŕ luz da sua utilizaçăo corrente para descrever práticas que săo aqui concebidas, quer como localismos globalizados, quer como globalismos localizados (para năo referir a sua utilizaçăo para descrever o âmbito mundial das empresas multinacionais como “cosmocorp”). Emprego, contudo, para assinalar que, contrariamente ŕ crença modernista (particularmente no momento de ), o cosmopolitismo é apenas possível de um modo intersticial nas margens do sistema mundial em transiçăo como uma prática e um discurso contra-hegemónicos gerados em coligaçőes progressistas de classes ou grupos subalternos e seus aliados. O cosmopolitismo é efectivamente uma tradiçăo da modernidade ocidental, mas é uma das muitas tradiçőes suprimidas ou marginalizadas pela tradiçăo hegemónica que gerou no passado a expansăo europeia, o colonialismo e o imperialismo, e que hoje gera os localismos globalizados e os globalismos localizados.

Neste contexto, é ainda necessário fazer uma outra precisăo. O cosmopolitismo pode invocar a crença de Marx na universalidade daqueles que, sob o capitalismo, tęm somente a perder as suas grilhetas.13 Năo enjeito tal invocaçăo, mas insisto na distinçăo entre o cosmopolitismo, tal como o entendo, e o universalismo da classe trabalhadora marxista. Para além da classe operária descrita por Marx, as classes dominadas do mundo actual săo agrupáveis em mais duas categorias, nenhuma delas redutível ŕ classe-que-só-tem-a-perder-as-grilhetas. Por um lado, sectores consideráveis ou influentes das classes trabalhadoras dos países centrais, e até dos países semiperiféricos, que tęm hoje mais a perder do que as grilhetas, mesmo que esse “mais” năo seja muito mais, ou seja, mais simbólico do que material. 14Por outro, vastas populaçőes do mundo que nem sequer tęm grilhetas, ou seja, que năo săo suficientemente úteis ou aptas para serem directamente exploradas pelo capital e a quem, consequentemente, a eventual ocorręncia de uma tal exploraçăo soaria como libertaçăo. Em toda a sua variedade, as coligaçőes cosmopolitas visam a luta pela emancipaçăo das classes dominadas, sejam elas dominadas por mecanismos de opressăo ou de exploraçăo. Talvez por isso, contrariamente ŕ concepçăo marxista, o cosmopolitismo năo implica uniformidade e o colapso das diferenças, autonomias e identidades locais. O cosmopolitismo năo é mais do que o cruzamento de lutas progressistas locais com o objectivo de maximizar o seu potencial emancipatório in loco através das ligaçőes translocais/locais.

Provavelmente a mais importante diferença entre a minha concepçăo de cosmopolitismo e a universalidade dos oprimidos de Marx é que as coligaçőes cosmopolitas progressistas năo tęm necessariamente uma base classista. Integram grupos sociais constituídos em base năo-classista, vítimas, por exemplo, de discriminaçăo sexual, étnica, rácica, religiosa, etária, etc. Por esta razăo, em parte, o carácter progressista ou contra-hegemónico das coligaçőes cosmopolitas nunca pode ser determinado em abstracto. Ao invés, é intrinsecamente instável e problemático. Exige dos que nelas participam uma auto-reflexividade permanente. Iniciativas cosmopolitas concebidas e criadas com um carácter contra-hegemónico podem vir a assumir posteriormente características hegemónicas, correndo mesmo o risco de se converterem em localismos globalizados. Basta pensar nas iniciativas de democracia participativa a nível local que durante anos tiveram de lutar contra o “absolutismo” da democracia representativa e a desconfiança por parte das elites políticas conservadoras, tanto nacionais como internacionais, e que hoje começam a ser reconhecidas e mesmo apadrinhadas pelo Banco Mundial seduzido pela eficácia e pela ausęncia de corrupçăo com que tais iniciativas aplicam os fundos e os empréstimos de desenvolvimento. A vigilância auto-reflexiva é essencial para distinguir entre a concepçăo tecnocrática de democracia participativa sancionada pelo Banco Mundial e a concepçăo democrática e progressista de democracia participativa, embriăo de globalizaçăo contra-hegemónica.15

A instabilidade do carácter progressista ou contra-hegemónico decorre ainda de um outro factor: das diferentes concepçőes de resistęncia emancipatória por parte de iniciativas cosmopolitas em diferentes regiőes do sistema mundial. Por exemplo, a luta pelos padrőes mínimos da qualidade de trabalho (os chamados luta conduzida pelas organizaçőes sindicais e grupos de direitos humanos dos países mais desenvolvidos, com objectivos de solidariedade internacionalista, no sentido de impedir que produtos produzidos com trabalho que năo atinge esses padrőes mínimos possam circular livremente no mercado mundial -, é certamente vista pelas organizaçőes que a promovem como contra-hegemónica e emancipatória, uma vez que visa melhorar as condiçőes de vida dos trabalhadores, mas pode ser vista por organizaçőes similares dos países da periferia como mais uma estratégia hegemónica do Norte, cujo efeito útil é criar mais uma forma de proteccionismo favorável aos países ricos.

O segundo modo de produçăo de globalizaçăo em que se organiza a resistęncia aos localismos globalizados e aos globalismos localizados, é o que eu designo, recorrendo ao direito internacional, o património comum da humanidade. Trata-se de lutas transnacionais pela protecçăo e desmercadorizaçăo de recursos, entidades, artefactos, ambientes considerados essenciais para a sobrevivęncia digna da humanidade e cuja sustentabilidade só pode ser garantida ŕ escala planetária. Pertencem ao património comum da humanidade, em geral, as lutas ambientais, as lutas pela preservaçăo da Amazónia, da Antártida, da biodiversidade ou dos fundos marinhos e ainda as lutas pela preservaçăo do espaço exterior, da lua e de outros planetas concebidos também como património comum da humanidade. Todas estas lutas se referem a recursos que, pela sua natureza, tęm de ser geridos por outra lógica que năo a das trocas desiguais, por fideicomissos da comunidade internacional em nome das geraçőes presentes e futuras.16

O cosmopolitismo e o património comum da humanidade conheceram grande desenvolvimento nas últimas décadas. Através deles se foi construindo uma globalizaçăo política alternativa ŕ hegemónica desenvolvida a partir da necessidade de criar uma obrigaçăo política transnacional correspondente ŕ que até agora vinculou mutuamente cidadăos e Estados-naçăo. Tal obrigaçăo política mais ampla é por agora meramente conjuntural uma vez que está ainda por concretizar (ou sequer imaginar) uma instância política transnacional correspondente ŕ do Estado-naçăo. No entanto, as Organizaçőes Năo-Governamentais de advocacia progressista transnacional, as alianças entre elas e organizaçőes e movimentos locais em diferentes partes do mundo, a organizaçăo de campanhas contra a globalizaçăo hegemónica (das campanhas do Greenpeace ŕ Campanha Jubileu 2000), todos estes fenómenos săo, por vezes, vistos como sinais de uma sociedade civil e política global apenas emergente.

Mas tanto o cosmopolitismo como o património comum da humanidade tęm encontrado fortíssimas resistęncias por parte dos que conduzem a globalizaçăo hegemónica (localismos globalizados e globalismos localizados) ou dela se aproveitam. O património comum da humanidade, em especial, tem estado sob constante ataque por parte de países hegemónicos, sobretudo dos EUA. Os conflitos, as resistęncias, as lutas e as coligaçőes em torno do cosmopolitismo e do património comum da humanidade demonstram que aquilo a que chamamos globalizaçăo é, na verdade, um conjunto de campos de lutas transnacionais. Daí a importância em distinguir entre globalizaçăo de-cima-para-baixo e globalizaçăo de-baixo-para-cima, ou entre globalizaçăo hegemónica e globalizaçăo contra-hegemónica. Os localismos globalizados e os globalismos localizados săo globalizaçőes de-cima-para-baixo ou hegemónicas; cosmopolitismo e património comum da humanidade săo globalizaçőes de-baixo-para-cima, ou contra-hegemónicas. É importante ter em mente que estes dois tipos de globalizaçăo năo existem em paralelo como se fossem duas entidades estanques. Ao contrário, săo a expressăo e o resultado das lutas que se travam no interior do campo social que convencionámos chamar globalizaçăo e que em realidade se constrói segundo quatro modos de produçăo. Como qualquer outra, a concepçăo de globalizaçăo aqui proposta năo é pacífica.17 Para a situar melhor nos debates actuais sobre a globalizaçăo săo necessárias algumas precisőes.

7. Globalizaçăo hegemónica e contra-hegemónica

Um dos debates actuais gira em redor da questăo de saber se há uma ou várias globalizaçőes. Para a grande maioria dos autores, só há uma globalizaçăo, a globalizaçăo capitalista neoliberal, e por isso năo faz sentido distinguir entre globalizaçăo hegemónica e contra-hegemónica. Havendo uma só globalizaçăo, a resistęncia contra ela năo pode deixar de ser a localizaçăo auto-assumida. Segundo Jerry Mander, a globalizaçăo económica tem uma lógica férrea que é duplamente destrutiva. Năo só năo pode melhorar o nível de vida da esmagadora maioria da populaçăo mundial (pelo contrário, contribui para a sua pioria), como năo é sequer sustentável a médio prazo (1996: 18). Ainda hoje a maioria da populaçăo mundial mantém economias relativamente tradicionais, muitos năo săo “pobres” e uma alta percentagem dos que săo foram empobrecidos pelas políticas da economia neoliberal. Em face disto, a resistęncia mais eficaz contra a globalizaçăo reside na promoçăo das economias locais e comunitárias, economias de pequena-escala, diversificadas, auto-sustentáveis, ligadas a forças exteriores, mas năo dependentes delas. Segundo esta concepçăo, numa economia e numa cultura cada vez mais desterritorializadas, a resposta contra os seus malefícios năo pode deixar de ser a reterritorializaçăo, a redescoberta do sentido do lugar e da comunidade, o que implica a redescoberta ou a invençăo de actividades produtivas de proximidade.

Esta posiçăo tem-se traduzido na identificaçăo, criaçăo e promoçăo de inúmeras iniciativas locais em todo o mundo. Consequentemente é hoje muito rico o conjunto de propostas que, em geral, podíamos designar por localizaçăo. Entendo por localizaçăo o conjunto de iniciativas que visam criar ou manter espaços de sociabilidade de pequena escala, comunitários, assentes em relaçőes face-a-face, orientados para a auto-sustentabilidade e regidos por lógicas cooperativas e participativas. As propostas de localizaçăo incluem iniciativas de pequena agricultura familiar ( Berry, 1996; Inhoff, 1996), pequeno comércio local (Norberg-Hodge, 1996), sistemas de trocas locais baseado em moedas locais (Meeker-Lowry
, 1996), formas participativas de auto-governo local (Kumar, 1996; Morris, 1996). Muitas destas iniciativas ou propostas assentam na ideia de que a cultura, a comunidade e a economia estăo incorporadas e enraizadas em lugares geográficos concretos que exigem observaçăo e protecçăo constantes. É isto o que se chama bio-regionalismo (Sale, 1996).

As iniciativas e propostas de localizaçăo năo implicam necessariamente fechamento isolacionista. Implicam, isso sim, medidas de protecçăo contra as investidas predadoras da globalizaçăo neoliberal. Trata-se de um “novo proteccionismo”: a maximizaçăo do comércio local no interior de economias locais, diversificadas e auto-sustentáveis e a minimizaçăo do comércio de longa distância (Hines e Lang, 1996: 490).18 O novo proteccionismo parte da ideia de que a economia global, longe de ter eliminado o velho proteccionismo, é, ela própria, uma táctica proteccionista das empresas multinacionais e dos bancos internacionais contra a capacidade das comunidades locais de preservarem a sua própria sustentabilidade e a da natureza.

O paradigma da localizaçăo năo implica necessariamente a recusa de resistęncias globais ou translocais. Pőe, no entanto, o acento tónico na promoçăo das sociabilidades locais. É esta a posiçăo de Norberg-Hodge (1996), para quem é necessário distinguir entre estratégias para pôr freio ŕ expansăo descontrolada da globalizaçăo e estratégias que promovam soluçőes reais para as populaçőes reais. As primeiras devem ser levadas a cabo por iniciativas translocais, nomeadamente através de tratados multilaterais que permitam aos Estados nacionais proteger as populaçőes e o meio ambiente dos excessos do comércio livre. Ao contrário, o segundo tipo de estratégias, sem dúvida, as mais importantes, só pode ser levado a cabo através de múltiplas iniciativas locais e de pequena escala tăo diversas quanto as culturas, os contextos e o meio ambiente em que tęm lugar. Năo se trata de pensar em termos de esforços isolados e antes de instituiçőes que promovam a pequena escala em larga escala.

Esta posiçăo é que mais se aproxima da que resulta da concepçăo de uma polarizaçăo entre globalizaçăo hegemónica e globalizaçăo contra-hegemónica aqui proposta. A diferença está na ęnfase relativa entre as várias estratégias de resistęncia em presença. Em minha opiniăo, é incorrecto dar prioridade, quer ŕs estratégias locais, quer ŕs estratégias globais. Uma das armadilhas da globalizaçăo neoliberal consiste em acentuar simbolicamente a distinçăo entre o local e o global e ao mesmo tempo destruí-la ao nível dos mecanismos reais da economia. A acentuaçăo simbólica destina-se a deslegitimar todos os obstáculos ŕ expansăo incessante da globalizaçăo neoliberal, agregando-os a todos sob a designaçăo de local e mobilizando contra eles conotaçőes negativas através dos fortes mecanismos de inculcaçăo ideológica de que dispőe. Ao nível dos processos transnacionais, da economia ŕ cultura, o local e o global săo cada vez mais os dois lados da mesma moeda como, de resto, salientei acima. Neste contexto, a globalizaçăo contra-hegemónica é tăo importante quanto a localizaçăo contra-hegemónica. As iniciativas, organizaçőes e movimentos que acima designei como integrantes do cosmopolitismo e do património comum da humanidade, tęm uma vocaçăo transnacional mas nem por isso deixam de estar ancorados em locais concretos e em lutas locais concretas. A advocacia transnacional dos direitos humanos visa defendę-los nos locais concretos do mundo onde eles săo violados, tal como a advocacia transnacional da ecologia visa pôr cobro a destruiçőes concretas, locais ou translocais, do meio ambiente. Há formas de luta mais orientadas para a criaçăo de redes entre locais, mas obviamente elas năo serăo sustentáveis se năo partirem de lutas locais ou năo forem sustentadas por elas. As alianças transnacionais entre sindicatos de trabalhadores da mesma empresa multinacional, a operar em diferentes países, visam melhorar as condiçőes de vida em cada um dos locais de trabalho, dando mais força e mais eficácia ŕs lutas locais dos trabalhadores. É neste sentido que se deve entender a proposta de Chase-Dunn (1998), no sentido da globalizaçăo política dos movimentos populares de modo a criar um sistema global democrático e colectivamente racional.

O global acontece localmente. É preciso fazer com que o local contra-hegemónico também aconteça globalmente. Para isso năo basta promover a pequena escala em grande escala. É preciso desenvolver, como propus noutro lugar (Santos, 1999) uma teoria da traduçăo que permita criar inteligibilidade recíproca entre as diferentes lutas locais, aprofundar o que tęm em comum de modo a promover o interesse em alianças translocais e a criar capacidades para que estas possam efectivamente ter lugar e prosperar.

Ŕ luz da caracterizaçăo do sistema mundial em transiçăo que propus acima, o cosmopolitismo e o património comum da humanidade constituem globalizaçăo contra-hegemónica na medida em que lutam pela transformaçăo de trocas desiguais em trocas de autoridade partilhada. Esta transformaçăo tem de ocorrer em todas as constelaçőes de práticas, mas assumirá perfis distintos em cada uma delas. No campo das práticas interestatais, a transformaçăo tem de ocorrer simultaneamente ao nível dos Estados e do sistema interestatal. Ao nível dos Estados trata-se de transformar a democracia de baixa intensidade, que hoje domina, pela democracia de alta intensidade.19 Ao nível do sistema interestatal, trata-se de promover a construçăo de mecanismos de controlo democrático através de conceitos como o de cidadania pós-nacional e o de esfera pública transnacional.

No campo das práticas capitalistas globais, a transformaçăo contra-hegemónica consiste na globalizaçăo das lutas que tornem possível a distribuiçăo democrática da riqueza, ou seja, uma distribuiçăo assente em direitos de cidadania, individuais e colectivos, aplicados transnacionalmente.

Finalmente, no campo das práticas sociais e culturais transnacionais, a transformaçăo contra-hegemónica consiste na construçăo do multiculturalismo emancipatório, ou seja, na construçăo democrática das regras de reconhecimento recíproco entre identidades e entre culturas distintas. Este reconhecimento pode resultar em múltiplas formas de partilha – tais como, identidades duais, identidades híbridas, interidentidade e transidentidade – mas todas elas devem orientar-se pela seguinte pauta transidentitária e transcultural: temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza e de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.20

8. A globalizaçăo hegemónica e o pós-Consenso de Washington

Distinguir entre globalizaçăo hegemónica e globalizaçăo contra-hegemónica implica pressupor a coeręncia interna de cada uma delas. Trata-se, no entanto, de um pressuposto problemático, pelo menos no actual período de transiçăo em que nos encontramos. Já assinalei que a globalizaçăo contra-hegemónica, ainda que reconduzível a dois modos de produçăo de globalizaçăo – o cosmopolitismo e o património comum da humanidade -, é internamente muito fragmentada na medida em que assume predominantemente a forma de iniciativas locais de resistęncia ŕ globalizaçăo hegemónica. Tais iniciativas estăo enraizadas no espírito do lugar, na especificidade dos contextos, dos actores e dos horizontes de vida localmente constituídos. Năo falam a linguagem da globalizaçăo e nem sequer linguagens globalmente inteligíveis. O que faz delas globalizaçăo contra-hegemónica é, por um lado, a sua proliferaçăo um pouco por toda a parte enquanto respostas locais a pressőes globais – o local é produzido globalmente – e, por outro lado, as articulaçőes translocais que é possível estabelecer entre elas ou entre elas e organizaçőes e movimentos transnacionais que partilham pelo menos parte dos seus objectivos.

Estas características gerais năo vigoram, no entanto, de modo homogéneo em todo o planeta. Pelo contrário, articulam-se de modo diferenciado com diferentes condiçőes nacionais e locais, sejam elas a trajectória histórica do capitalismo nacional; a estrutura de classes; o nível de desenvolvimento tecnológico; o grau de institucionalizaçăo dos conflitos sociais e, sobretudo, dos conflitos capital/trabalho; os sistemas de formaçăo e qualificaçăo da força de trabalho; as redes de instituiçőes públicas que asseguram um tipo concreto de articulaçăo entre a política e a economia. No que respeita especificamente a estas últimas, a nova economia institucional (North, 1990; Reis, 1998) tem vindo a salientar o papel central da ordem constitucional, o conjunto de instituiçőes e de compromissos institucionalizados que asseguram os mecanismos de resoluçăo de conflitos, os níveis de tolerância ante as desigualdades e os desequilíbrios, e, em geral, definem o que é preferível, permitido ou proibido (Boyer, 1998: 12). Cada ordem constitucional tem a sua própria historicidade e é ela que determina a especificidade da resposta local ou nacional ŕs mesmas pressőes globais. Esta especificidade faz com que, em termos de relaçőes sociais e institucionais, năo haja um só capitalismo mas vários.

O capitalismo, enquanto modo de produçăo, tem assim evoluído historicamente em diferentes famílias de trajectórias. Boyer distingue quatro dessas trajectórias as quais constituem as quatro configuraçőes principais do capitalismo contemporâneo: o capitalismo mercantil dos EUA, Inglaterra, Canadá, Nova Zelândia e Austrália; o capitalismo mesocorporativo do Japăo; o capitalismo social democrático da Suécia, Áustria, Finlândia, Noruega e Dinamarca, e, em menor grau, Alemanha; o capitalismo estatal da França, Itália e Espanha (Boyer, 1996, 1998). Esta tipologia restringe-se ŕs economias dos países centrais, ficando, pois, fora dela a maioria dos capitalismos reais da Ásia, da América Latina, da Europa Central, do Sul e de Leste e da África. A sua utilidade reside em mostrar a variedade das formas de capitalismo e o modo diferenciado como cada uma delas se insere nas transformaçőes globais.

No capitalismo mercantil o mercado é a instituiçăo central; as suas insuficięncias săo supridas por agęncias de regulaçăo; o interesse individual e a competiçăo dominam todas as esferas da sociedade; as relaçőes sociais, de mercado e de trabalho, săo reguladas pelo direito privado; os mercados de trabalho săo extremamente flexíveis; é dada toda a prioridade ŕ inovaçăo tecnológica promovida por diferentes tipos de incentivos e protegida pelo direito de patentes e de propriedade intelectual; săo toleradas grandes desigualdades sociais bem como o subinvestimento em bens públicos ou de consumo colectivo (transportes públicos, educaçăo, saúde, etc.).
O capitalismo mesocorporativo japonęs é liderado pela grande empresa; é no seio desta que se obtęm os ajustamentos económicos principais através dos bancos que detęm e da rede de empresas afiliadas que controlam; a regulaçăo pública actua em estreita coordenaçăo com as grandes empresas; dualidade entre os trabalhadores “regulares” e os trabalhadores “irregulares”, sendo a linha divisória a entrada ou năo na carreira estruturada no interior do mercado interno da grande empresa; săo altos os níveis de educaçăo generalista e a formaçăo profissional é fornecida pelas empresas; aceita-se a estabilidade das desigualdades.
O capitalismo social-democrático assenta na concertaçăo social entre os parceiros sociais, as organizaçőes representativas dos patrőes e dos trabalhadores e o Estado; compromissos mutuamente vantajosos que garantam a compatibilidade entre ganhos de competitividade, inovaçăo e produtividade, por um lado, e ganhos salariais e melhoria do nível de vida, por outro; prevalęncia da justiça social; alto investimento em educaçăo; organizaçăo do mercado de trabalho de modo a minimizar a flexibilidade e a promover a qualificaçăo como resposta ao aumento da competitividade e ŕ inovaçăo tecnológica; elevada protecçăo social contra os riscos; minimizaçăo das desigualdades sociais.

Finalmente, o capitalismo estatal assenta na centralidade da intervençăo estatal como princípio de coordenaçăo em face da fraqueza da ideologia do mercado e das organizaçőes dos parceiros sociais; sistema público de educaçăo para a produçăo de elites empresariais públicas e privadas; fraca formaçăo profissional; mercado de trabalho altamente regulado; investigaçăo científica pública com deficiente articulaçăo com o sector privado; elevada protecçăo social. Apesar de Portugal continuar a ser uma sociedade semiperiférica, a institucionalidade capitalista que domina entre nós aponta para o tipo de capitalismo estatal. A plena consolidaçăo deste modelo de institucionalidade parece estar bloqueada no nosso país, pelas pressőes contraditórias, ainda que desiguais, de que o modelo é alvo e que, por paradoxal que pareça, săo exercidas pelo próprio Estado: por um lado, as pressőes no sentido do capitalismo social democrático e, por outro lado, as pressőes bem mais fortes no sentido do capitalismo mercantil. Neste caótico processo de transiçăo há ainda vestígios de capitalismo mesocorporativo, sobretudo em face da articulaçăo íntima entre o Estado e os grupos financeiros e entre o Estado e grandes empresas públicas e privadas em fase de internacionalizaçăo.

Em face da coexistęncia destes quatro grandes tipos de capitalismo (e certamente de outros tipos em vigor nas regiőes do mundo năo integradas na classificaçăo), pode questionar-se a existęncia de uma globalizaçăo económica hegemónica. Afinal, cada um destes tipos de capitalismo constitui um regime de acumulaçăo e um modo de regulaçăo dotados de estabilidade, em que é grande a complementaridade e a compatibilidade entre as instituiçőes. Por esta via, o tecido institucional tem uma capacidade antecipatória ante possíveis ameaças desestruturantes. A verdade, porém, é que os regimes de acumulaçăo e os modos de regulaçăo săo entidades históricas dinâmicas; aos períodos de estabilidade seguem-se períodos de desestabilizaçăo, por vezes induzidos pelos próprios ęxitos anteriores. Ora desde a década de oitenta, temos vindo a assistir a uma enorme turbulęncia nesses diferentes tipos de capitalismo. A turbulęncia năo é, porém, caótica e nela podemos detectar algumas linhas de força. Săo essas linhas de força que compőem o carácter hegemónico da globalizaçăo económica.

Em geral, e nos termos da definiçăo de globalizaçăo acima proposta, pode dizer-se que a evoluçăo consiste na globalizaçăo do capitalismo mercantil e na consequente localizaçăo dos capitalismos mesocorporativos, social democrático e estatal. Localizaçăo implica desestruturaçăo e adaptaçăo. As linhas de força por que uma e outra se tęm pautado săo as seguintes: os compromissos entre o capital e o trabalho săo vulnerabilizados pela nova inserçăo na economia internacional (mercados livres e procura global de investimentos directos); a segurança da relaçăo social é convertida em rigidez da relaçăo salarial; a prioridade dada aos mercados financeiros bloqueia a distribuiçăo de rendimentos e exige a reduçăo das despesas públicas em material social; a transformaçăo do trabalho num recurso global é feita de modo a coexistir com a diferenciaçăo de salários e de preços; o aumento da mobilidade do capital faz com que a fiscalidade passe a incidir sobre rendimentos imóveis (sobretudo os do trabalho); o papel redistributivo das políticas sociais decresce e, em consequęncia, aumentam as desigualdades sociais; a protecçăo social é sujeita a uma pressăo privatizante, sobretudo no domínio das pensőes de reforma dado o interesse nelas por parte dos mercados financeiros; a actividade estatal intensifica-se, mas agora no sentido de incentivar o investimento, as inovaçőes e as exportaçőes; o sector empresarial do Estado, quando năo é totalmente eliminado, é fortemente reduzido; a pauperizaçăo dos grupos sociais vulneráveis e a acentuaçăo das desigualdades sociais săo consideradas efeitos inevitáveis da prosperidade da economia e podem ser minoradas por medidas compensatórias desde que estas năo perturbem o funcionamento dos mecanismos de mercado.

É este o perfil da globalizaçăo hegemónica, sobretudo económica e política. A sua identificaçăo tem a ver com as escalas de análise. Ao nível da grande escala (a análise que cobre uma pequena área em grande detalhe), tal hegemonia é dificilmente detectável na medida em que a esta escala sobressaem sobretudo as particularidades nacionais e locais e as especificidades das respostas, resistęncias e adaptaçőes a pressőes externas. Pelo contrário, ao nível da pequena escala (a análise que cobre grandes áreas, mas com pouco detalhe), só săo visíveis as grandes tendęncias globalizantes e a tal ponto que a diferenciaçăo nacional ou regional do seu impacto e as resistęncias que lhe săo movidas săo negligenciadas. É a este nível de análise que se colocam os autores para quem a globalizaçăo é um fenómeno sem precedentes, tanto na sua estrutura, como na sua intensidade. Também para eles é inadequado falar de globalizaçăo hegemónica, pois, como referi acima, havendo uma só globalizaçăo inelutável, faz pouco sentido falar de hegemonia e, ainda menos, de contra-hegemonia. É ao nível da escala média que se torna possível identificar fenómenos globais hegemónicos que, por um lado, se articulam de múltiplas formas com condiçőes locais, nacionais e regionais e que, por outro lado, săo confrontados com resistęncias locais nacionais e globais que se podem caracterizar como contra-hegemónicas.

A escolha dos níveis de escala é assim crucial e pode ser determinada tanto por razőes analíticas como por razőes de estratégia política ou ainda por uma combinaçăo entre elas. Por exemplo, para visualizar os conflitos entre os grandes motores do capitalismo global tem-se considerado adequado escolher uma escala de análise que distingue tręs grandes blocos regionais interligados por múltiplas interdependęncias e rivalidades: o bloco americano, o europeu e o japonęs (Stallings e Streeck, 1995; Castells, 1996: 108). Cada um destes blocos tem um centro, os EUA a Uniăo Europeia e o Japăo, respectivamente, uma semiperiferia e uma periferia. Ao nível desta escala, os dois tipos de capitalismo europeu acima referidos, o social-democrático e o estatal, aparecem fundidos num só. De facto, a Uniăo Europeia tem hoje uma política económica interna e internacional e é sob o seu nome que os diferentes capitalismos europeus travam as suas batalhas com o capitalismo norte-americano nos fora internacionais, nomeadamente na Organizaçăo Mundial do Comércio.

A escala média de análise é, pois, aquela que permite esclarecer melhor os conflitos e as lutas sociais que se travam ŕ escala mundial e as articulaçőes entre as suas dimensőes locais, nacionais e globais. É também ela que permite identificar fracturas no seio da hegemonia. As linhas de força, que acima referi como sendo o núcleo da globalizaçăo hegemónica, traduzem-se em diferentes constelaçőes institucionais, económicas, sociais, políticas e culturais ao articular-se com cada um dos quatro tipos de capitalismo ou com cada um dos tręs blocos regionais. Essas fracturas săo hoje muitas vezes o ponto de entrada para lutas sociais locais-globais de orientaçăo anticapitalista e contra-hegemónica.

As clivagens entre o capitalismo mercantil e o capitalismo social-democrático ou estatal, entre o modelo neoliberal de segurança social e o modelo social europeu ou ainda dentro do modelo neoliberal, ao mesmo tempo que revelam as fracturas no interior da globalizaçăo hegemónica criam o impulso para a formulaçăo de novas sínteses entre as clivagens e com elas para a reconstituiçăo da hegemonia. É assim que deve ser entendida a “terceira via” teorizada por Giddens (1999).

9. Graus de intensidade da globalizaçăo

A última precisăo ao conceito de globalizaçăo defendido neste texto diz respeito aos graus de intensidade da globalizaçăo. Definimos globalizaçăo como conjuntos de relaçőes sociais que se traduzem na intensificaçăo das interacçőes transnacionais, sejam elas práticas interestatais, práticas capitalistas globais ou práticas sociais e culturais transnacionais. A desigualdade de poder no interior dessas relaçőes (as trocas desiguais) afirma-se pelo modo como as entidades ou fenómenos dominantes se desvinculam dos seus âmbitos ou espaços e ritmos locais de origem, e, correspondentemente, pelo modo como as entidades ou fenómenos dominados, depois de desintegrados e desestruturados, săo revinculados aos seus âmbitos, espaços e ritmos locais de origem. Neste duplo processo, quer as entidades ou fenómenos dominantes (globalizados), quer os dominados (localizados) sofrem transformaçőes internas. Mesmo o hamburguer norte-americano teve de sofrer pequenas alteraçőes para se desvincular do seu âmbito de origem (o Midwest norte-americano) e conquistar o mundo, e o mesmo sucedeu com as leis de propriedade intelectual, a música popular e o cinema de Hollywood. Mas enquanto as transformaçőes dos fenómenos dominantes săo expansivas, visam ampliar âmbitos, espaços e ritmos, as transformaçőes dos fenómenos dominados săo retractivas, desintegradoras e desestruturantes; os seus âmbitos e ritmos, que eram locais por razőes endógenas e raramente se auto-representavam como locais, săo relocalizados por razőes exógenas e passam a auto-representar-se como locais. A desterritorializaçăo, desvinculaçăo local e transformaçăo expansiva, por um lado, e a reterritorializaçăo, revinculaçăo local e transformaçăo desintegradora e retractiva, por outro, săo as duas faces da mesma moeda, a globalizaçăo.

Estes processos ocorrem de modos muitos distintos. Quando se fala de globalizaçăo tem-se normalmente em mente processos muito intensos e muito rápidos de desterritorializaçăo e de reterritorializaçăo e consequentemente transformaçőes expansivas e retractivas muito dramáticas. Nestes casos, é relativamente fácil explicar estes processos por um conjunto limitado de causas bem definidas. A verdade, porém, é que os processos de globalizaçăo nem sempre ocorrem desta forma. Por vezes săo mais lentos, mais difusos, mais ambíguos e as suas causas mais indefinidas. Claro que é sempre possível estipular que neste caso năo estamos perante processos de globalizaçăo. É isto mesmo o que tendem a fazer os autores mais entusiastas a respeito da globalizaçăo e os que vęem nela algo sem precedentes, tanto pela natureza, como pela intensidade.21

Penso, porém, que esta estratégia analítica năo é a melhor porque, contrariamente ao que pretende, reduz o âmbito e a natureza dos processos de globalizaçăo em curso. Proponho, pois, a distinçăo entre globalizaçăo de alta intensidade para os processos rápidos, intensos e relativamente monocausais de globalizaçăo, e globalizaçăo de baixa intensidade para os processos mais lentos e difusos e mais ambíguos na sua causalidade. Um exemplo ajudará a identificar os termos da distinçăo. Escolho, entre muitos outros possíveis, um dos consensos de Washington: o primado do direito e da resoluçăo judicial dos litígios como parte do modelo de desenvolvimento liderado pelo mercado. Em meados da década de oitenta, começaram a chegar aos tribunais de vários países europeus casos que envolviam figuras públicas, indivíduos poderosos ou notórios na actividade económica ou na actividade política. Estes casos, quase todos da área criminal (corrupçăo, burla, falsificaçăo de documentos), deram uma visibilidade pública e um protagonismo político sem precedentes aos tribunais. Se exceptuarmos o caso do Tribunal Supremo dos EUA, desde a década de quarenta, os tribunais dos países centrais – e, de resto, também os dos países semiperiféricos e periféricos – tinham tido uma vida apagada. Reactivos e năo proactivos, resolvendo litígios entre indivíduos que raramente captavam a atençăo pública, sem intervençăo nos conflitos sociais, os tribunais – a sua actividade, as suas regras e os seus agentes – eram desconhecidos do grande público. Este estado de coisas começou a mudar na década de oitenta e rapidamente os tribunais passaram a ocupar as primeiras páginas dos jornais, a sua actividade converteu-se numa curiosidade jornalística e os magistrados tornaram-se figuras públicas.

Tal fenómeno ocorreu, por exemplo, na Itália, na França, na Espanha e em Portugal, e em cada país teve causas próximas específicas. A ocorręncia paralela e simultânea do mesmo fenómeno em diferentes países năo faz dela um fenómeno global, a menos que as causas endógenas, diferentes de país para país, tenham entre si afinidades estruturais ou partilhem traços de causas remotas, comuns e transnacionais. E de facto este parece ter sido o caso. Pese embora as diferenças nacionais, sempre significativas, podemos detectar no novo protagonismo judicial alguns factores comuns. Em primeiro lugar, as consequęncias da confrontaçăo entre o princípio do Estado e o princípio do mercado na gestăo da vida social de que resultaram as privatizaçőes e a desregulamentaçăo da economia, a desmoralizaçăo dos serviços públicos, a crise dos valores republicanos, um novo protagonismo do direito privado, a emergęncia de actores sociais poderosos para quem se transferiram prerrogativas de regulaçăo social, antes detidas pelo Estado. Tudo isto criou uma nova promiscuidade entre o poder económico e o poder político que permitiu ŕs elites circular facilmente e, por vezes, pendularmente, de um para outro. Esta promiscuidade combinada como enfraquecimento da ideia de bem público ou bem comum acabou por se traduzir numa nova patrimonializaçăo ou privatizaçăo do Estado que muitas vezes recorreu ŕ ilegalidade para se concretizar. Foi a criminalidade de colarinho branco e, em geral, a corrupçăo que deram a notoriedade aos tribunais.

Em segundo lugar, a crescente conversăo da globalizaçăo capitalista hegemónica em algo irreversível e incontornável combinada com os sinais de crise dos regimes comunistas conduziu ŕ atenuaçăo das grandes clivagens políticas. Estas, que antes permitiam a resoluçăo política dos conflitos políticos, deixaram de o poder fazer e estes últimos foram atenuados, fragmentados e personalizados até ao ponto de se poderem transformar em conflitos judiciais. Chamamos a este processo político de despolitizaçăo, judicializaçăo da política. Em terceiro lugar, esta judicializaçăo da política, que foi, na sua génese, um sintoma da crise da democracia, alimentou-se desta. A legitimidade democrática que antes assentava quase exclusivamente nos órgăos políticos eleitos, o parlamento e o executivo, foi-se transferindo de algum modo para os tribunais.

Este fenómeno que, além dos países atrás referidos, tem vindo a ocorrer na última década em muitos outros países da Europa de Leste, da América Latina e da Ásia22 e a mesma relaçăo entre causas próximas (endógenas e específicas) e causas remotas (comuns, transnacionais) pode ser detectada ainda que com adaptaçőes. Por esta razăo, considero estarmos perante um fenómeno de globalizaçăo de baixa intensidade.

Muito diferente deste processo é o que, na mesma área da justiça e do direito, tem vindo a ser protagonizado pelos países centrais, através das suas agęncias de cooperaçăo e assistęncia internacional, e pelo Banco Mundial, FMI e Banco Interamericano para o Desenvolvimento, no sentido de promover nos países semiperiféricos e periféricos profundas reformas jurídicas e judiciais que tornem possível a criaçăo de uma institucionalidade jurídica e judicial eficiente e adaptada ao novo modelo de desenvolvimento, assente na prioridade do mercado e das relaçőes mercantis entre cidadăos e agentes económicos. Para este objectivo tęm sido canalizadas vultuosas doaçőes e empréstimos sem qualquer precedente quando comparadas com as políticas de cooperaçăo, de modernizaçăo e de desenvolvimento dos anos sessenta e setenta. Tal como no processo de globalizaçăo acima descrito, também aqui está em curso uma política de primado do direito e dos tribunais e dela estăo a decorrer os mesmos fenómenos de visibilidade pública dos tribunais, de judicializaçăo da política e da consequente politizaçăo do judicial. No entanto, ao contrário do processo anterior, este processo é muito rápido e intenso, ocorre pelo impulso de factores exógenos dominantes, bem definidos e facilmente reconduzíveis a políticas globais hegemónicas interessadas em criar, a nível global, a institucionalidade que facilita a expansăo limitada do capitalismo global.23 Trata-se de uma globalizaçăo de alta intensidade.

A utilidade desta distinçăo reside em que ela permite esclarecer as relaçőes de poder desigual que subjazem aos diferentes modos de produçăo de globalizaçăo e que săo, por isso, centrais na concepçăo de globalizaçăo aqui proposta. A globalizaçăo de baixa intensidade tende a dominar em situaçőes em que as trocas săo menos desiguais, ou seja, em que as diferenças de poder (entre países, interesses, actores ou práticas por detrás de concepçőes alternativas de globalizaçăo) săo pequenas. Pelo contrário, a globalizaçăo de alta intensidade tende a dominar em situaçőes em que as trocas săo muito desiguais e as diferenças de poder săo grandes.

10. Para onde vamos?

A intensificaçăo das interacçőes económicas, políticas e culturais transnacionais das tręs últimas décadas assumiu proporçőes tais que é legítimo levantar a questăo de saber se com isso se inaugurou um novo período e um novo modelo de desenvolvimento social. A natureza precisa deste período e deste modelo está no centro dos debates actuais sobre o carácter das transformaçőes em curso nas sociedades capitalistas e no sistema capitalista mundial como um todo. Defendi atrás que o período actual é um período de transiçăo a que chamei o período do sistema mundial em transiçăo. Combina características próprias do sistema mundial moderno com outras que apontam para outras realidades sistémicas ou extrasistémicas. Năo se trata de uma mera justaposiçăo de características modernas e emergentes já que a combinaçăo entre elas altera a lógica interna de umas e outras. O sistema mundial em transiçăo é muito complexo porque constituído por tręs grandes constelaçőes de práticas – práticas interestatais, práticas capitalistas globais e práticas sociais e culturais transnacionais – profundamente entrelaçadas segundo dinâmicas indeterminadas. Trata-se, pois, de um período de grande abertura e indefiniçăo, um período de bifurcaçăo cujas transformaçőes futuras săo imperscrutáveis. A própria natureza do sistema mundial em transiçăo é problemática e a ordem possível é a ordem da desordem. Mesmo admitindo que um novo sistema se seguirá ao actual período de transiçăo, năo é possível estabelecer uma relaçăo determinada entre a ordem que o sustentará e a ordem caótica do período actual ou a ordem năo caótica que a precedeu e que sustentou durante cinco séculos o sistema mundial moderno. Nestas circunstâncias, năo admira que o período actual seja objecto de várias e contraditórias leituras.
Săo duas as leituras alternativas principais acerca das mudanças actuais do sistema mundial em transiçăo e dos caminhos que apontam: aleitura paradigmática e a leitura subparadigmática.
A leitura paradigmática sustenta que o final dos anos sessenta e o início dos anos setenta marcaram o período de transiçăo paradigmática no sistema mundial, um período de crise final da qual emergirá um novo paradigma social. Uma das leituras paradigmáticas mais sugestivas é a proposta por Wallerstein e seus colaboradores.24 Segundo este autor, o sistema mundial moderno entrou num período de crise sistémica iniciado em 1967 e que se estenderá até meados do século XXI. Na sua perspectiva, o período entre 1967 e 1973 é um período crucial porque marca uma conjuntura tripla de pontos de ruptura no sistema mundial: a) o ponto de ruptura numa longa curva de Kondratief (1945-1995?); b) o ponto de ruptura da hegemonia dos EUA sobre o sistema mundial (1873-2025?); c) o ponto de ruptura no sistema mundial moderno (1450-2100?).

Wallerstein previne que as provas que apoiam esta tripla ruptura săo mais sólidas em a) do que em b) e em b) mais do que em c), o que se compreende uma vez que o ponto final putativo dos ciclos está sucessivamente mais afastado no futuro. Segundo ele, a expansăo económica mundial está a conduzir ŕ mercadorizaçăo extrema da vida social e ŕ extrema polarizaçăo (năo só quantitativa mas também social) e, como consequęncia, está a atingir o seu limite máximo de ajustamento e de adaptaçăo e esgotará em breve “a sua capacidade de manutençăo dos ciclos rítmicos que săo o seu bater cardíaco” (1991a: 134). O colapso dos mecanismos de ajustamento estrutural abre um vasto terreno para a experimentaçăo social e para escolhas históricas reais, muito difíceis de prever. Com efeito, as cięncias sociais modernas revelam-se aqui de pouca utilidade, a menos que elas mesmas se sujeitem a uma revisăo radical e se insiram num questionar mais amplo. Wallerstein designa tal questionamento por utopística (distinto de utopismo), i.e., “a cięncia das utopias utópicas… a tentativa de clarificar as alternativas históricas reais que estăo ŕ nossa frente quando um sistema histórico entra numa fase de crise, e avaliar nesse momento extremo de flutuaçőes as vantagens e as desvantagens das estratégias alternativas” (1991a: 270).

De uma perspectiva diferente embora convergente, Arrighi convida-nos a revisitar as previsőes de Schumpeter acerca do futuro do capitalismo e com base nelas coloca a questăo schumpeteriana: poderá o capitalismo sobreviver ao sucesso? (Arrighi, 1994: 325; Arrighi e Silver, 1999). Há uns 50 anos, Schumpeter formulou a tese de que “o desempenho actual e prospectivo do sistema capitalista é tal que refuta a ideia de o seu colapso ocorrer sob o peso do fracasso económico, mas o seu próprio sucesso corrompe as instituiçőes sociais que o protegem e “inevitavelmente” cria as condiçőes sob as quais năo conseguirá sobreviver e que apontam fortemente para o socialismo como o seu aparente herdeiro” (Schumpeter, 1976: 61). Schumpeter era assim muito céptico acerca do futuro do capitalismo e Arrighi defende que a história poderá vir a dar-lhe razăo: “A sua ideia de que uma outra viragem bem sucedida estava ao alcance do capitalismo revelou-se obviamente correcta. Mas as possibilidades indicam que, durante o próximo meio século, a história provará estar também certa a sua outra ideia de que a cada viragem bem sucedida se criam as condiçőes sob as quais a sobrevivęncia do capitalismo é cada vez mais difícil” (Arrighi, 1994: 325). Em trabalho mais recente, Arrighi e Silver salientam o papel da expansăo do sistema financeiro nas crises finais das ordens hegemónicas anteriores (holandesa e britânica). A actual financeirizaçăo da economia global aponta para a crise final da última e mais recente hegemonia, a dos EUA. Este fenómeno năo é, pois, novo, o que é novo e radicalmente novo é a sua combinaçăo com a proliferaçăo e o crescente poder das empresas multinacionais e o modo como elas interferem com o poder dos Estados nacionais. É nesta combinaçăo que se virá a sustentar uma transiçăo paradigmática (1999: 271-289).

A leitura subparadigmática vę o período actual como um importante processo de ajustamento estrutural, no qual o capitalismo năo parece dar mostra de falta de recursos ou de imaginaçăo adequados. O ajustamento é significativo porque implica a transiçăo de um regime de acumulaçăo para outro, ou de um modo de regulaçăo (“fordismo”) para outro (ainda por nomear; “pós-fordismo”), como vem sendo sustentado pelas teorias da regulaçăo.25 De acordo com alguns autores, o período actual de transiçăo pőe a descoberto os limites das teorias de regulaçăo e dos conceitos que elas converteram em linguagem comum como o conceito de “regimes de acumulaçăo” e de “modos de regulaçăo” (McMichael e Myhre, 1990; Boyer, 1996, 1998). As teorias da regulaçăo, pelo menos as que tiveram mais circulaçăo, tomaram o Estado-naçăo como a unidade da análise económica, o que fazia provavelmente sentido no período histórico do desenvolvimento capitalista dos países centrais em que essas teorias foram formuladas. Hoje, porém, a regulaçăo nacional da economia está em ruínas e dessas ruínas está a emergir uma regulaçăo transnacional, uma “relaçăo salarial global”, paradoxalmente assente na fragmentaçăo crescente dos mercados de trabalho que transforma drasticamente o papel regulatório do Estado-naçăo, forçando a retirada da protecçăo estatal dos mercados nacionais da moeda, trabalho e mercadorias e suscitando uma profunda reorganizaçăo do Estado. Na verdade, pode estar a ser forjada uma nova forma política: o “Estado transnacional”.

Como seria de esperar, tudo isto é questionável e está a ser questionado. Como vimos acima, a real dimensăo do enfraquecimento das funçőes regulatórias do Estado-naçăo é hoje um dos debates nucleares da sociologia e da economia políticas. Inquestionável é apenas o facto de que tais funçőes mudaram (ou estăo a mudar) dramaticamente e de um forma que questiona o dualismo tradicional entre regulaçăo nacional e internacional.

Dentro da leitura subparadigmática do actual período de desenvolvimento capitalista há, contudo, algum consenso em torno das seguintes questőes. Dada a natureza antagónica das relaçőes sociais capitalistas, a reproduçăo rotineira e a expansăo sustentada da acumulaçăo de capital é inerentemente problemática. De modo a ser obtida, pressupőe a) uma correspondęncia dinâmica entre um determinado padrăo de produçăo e um determinado padrăo de consumo (i.e., um regime de acumulaçăo) e b) um conjunto institucional de normas, instituiçőes, organizaçőes e pactos sociais, que assegure a reproduçăo de todo um campo de relaçőes sociais sobre o qual o regime de acumulaçăo está baseado (i.e., um modo de regulaçăo). Poderá haver crises do regime de acumulaçăo e crises no regime de acumulaçăo e o mesmo se passa com o modo de regulaçăo. Desde os anos sessenta, os países centrais estăo a atravessar uma dupla crise do regime de acumulaçăo e do modo de regulaçăo. O papel regulatório do Estado-naçăo tende a ser mais decisivo nas crises do do que nas crises no, mas o modo como isso é exercido depende fortemente do contexto internacional, da integraçăo da economia nacional na divisăo internacional do trabalho e das capacidades e recursos institucionais específicos do Estado em articular, sob condiçőes de crise hostis, estratégias de acumulaçăo com estratégicas hegemónicas e estratégias de confiança.26

A leitura paradigmática é muito mais ampla do que a leitura subparadigmática, tanto nas suas afirmaçőes substantivas como na amplitude do seu tempo-espaço. Segundo ela, a crise do regime de acumulaçăo e do modo de regulaçăo săo meros sintomas de uma crise muito mais profunda: uma crise civilizatória ou epocal. As “soluçőes” das crises subparadigmáticas săo produto dos mecanismos de ajustamento estrutural do sistema; dado que estes estăo a ser irreversivelmente corroídos, tais “soluçőes” serăo cada vez mais provisórias e insatisfatórias. Por seu lado, a leitura subparadigmática é, no máximo, agnóstica relativamente ŕs previsőes paradigmáticas e considera que, por serem de longo prazo, năo săo mais que conjecturas. Sustenta ainda que, se o passado tem alguma liçăo a dar-nos, é a de que até agora o capitalismo resolveu com sucesso as suas crises e sempre num horizonte temporal curto.

A confrontaçăo entre leituras paradigmáticas e leituras subparadigmáticas tem dois registos principais, o analítico e o ideológico-político. O registo analítico, como acabámos de ver, é a formulaçăo mais consistente do debate sobre se a globalizaçăo é um fenómeno novo ou um fenómeno velho. Porque se assume que o novo de hoje é sempre o prenúncio do novo de amanhă, os autores que consideram a globalizaçăo um fenómeno novo săo os mesmos que perfilham as leituras paradigmáticas, enquanto os autores que consideram a globalizaçăo um fenómeno velho, renovado ou năo, săo os mesmos que perfilham leituras subparadigmáticas.27

Mas esta confrontaçăo tem também um registo político-ideológico, uma vez que estăo em causa diferentes perspectivas sobre a natureza, o âmbito e a orientaçăo político-ideológica das transformaçőes em curso e, portanto, também das acçőes e das lutas que as hăo-de promover ou, pelo contrário, combater.

As duas leituras săo de facto os dois argumentos fundamentais a respeito da acçăo política nas condiçőes turbulentas dos nossos dias. Os argumentos paradigmáticos apelam a actores colectivos que privilegiam a acçăo transformadora enquanto os argumentos subparadigmáticos apelam a actores colectivos que privilegiam a acçăo adaptativa. Trata-se de dois tipos-ideais de actores colectivos. Alguns actores sociais (grupos, classes, organizaçőes) aderem apenas a um dos argumentos, mas muitos deles subscrevem um ou outro, consoante o tempo ou o tema, sem garantirem fidelidades exclusivas ou irreversíveis a um ou a outro. Alguns actores podem experienciar a globalizaçăo da economia no modo subparadigmático e a globalizaçăo da cultura no modo paradigmático, enquanto outros as podem conceber de modo inverso. Mais do que isso, alguns podem conceber como económicos os mesmos processos de globalizaçăo que outros consideram culturais ou políticos.
Os actores que privilegiam a leitura paradigmática tendem a ser mais apocalípticos na avaliaçăo dos medos, riscos, perigos e colapsos do nosso tempo e a ser mais ambiciosos relativamente ao campo de possibilidades e escolhas históricas que está a ser revelado. O processo de globalizaçăo pode assim ser visto, quer como altamente destrutivo de equilíbrios e identidades insubstituíveis, quer como a inauguraçăo de uma nova era de solidariedade global ou até mesmo cósmica.

Por sua vez, para os actores que privilegiam a leitura subparadigmática, as actuais transformaçőes globais na economia, na política e na cultura, apesar da sua relevância indiscutível, năo estăo a forjar nem um novo mundo utópico, nem uma catástrofe. Expressam apenas a turbulęncia temporária e o caos parcial que acompanham normalmente qualquer mudança nos sistemas rotinizados.

A coexistęncia de interpretaçőes paradigmáticas e de interpretaçőes subparadigmáticas é provavelmente a característica mais distintiva do nosso tempo. E năo será esta a característica de todos os períodos de transiçăo paradigmática? A turbulęncia inevitável e controlável para uns é vista por outros como prenúncio de rupturas radicais. E entre estes últimos, há os que vęem perigos incontroláveis onde outros vęem oportunidades para emancipaçőes insuspeitáveis. As minhas análises do tempo presente, a minha preferęncia pelas acçőes transformadoras e, em geral, a minha sensibilidade – e esta é a palavra exacta – inclinam-me a pensar que as leituras paradigmáticas interpretam melhor a nossa condiçăo no início do novo milénio do que as leituras subparadigmáticas.28

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Walton (1985) refere tręs formas sucessivas de "divisőes internacionais do trabalho", caracterizando-se a última e actual pela globalizaçăo da produçăo levada a cabo pelas multinacionais. Uma revisăo das diferentes abordagens ŕs "novas divisőes internacionais do trabalho", pode ser vista em Jenkins (1984). Ver igualmente Gordon (1988).

No mesmo sentido, cfr. Wade (1990, 1996) e Whitley (1992).

Segundo o mesmo relatório, 46% da populaçăo mundial a viver em pobreza absoluta vive na África subsahariana, 40% no Sul da Ásia e 15% no Extremo Oriente, Pacífico e América Latina. De qualquer modo, a proporçăo de pessoas a viver em pobreza absoluta diminuiu entre 1993 e 1998 de 29% para 24% (PNUD, 2001: 22). Ver também Kennedy (1993: 193-228) e Chossudovsky (1997). De acordo com Maizels (1992) as exportaçőes de bens primários do Terceiro Mundo aumentaram quase 100% durante o período 1980-88. Mas as receitas obtidas em 1988 foram 30% inferiores ŕs obtidas em 1980. Ver também Singh (1993).

Em 1995, a malária afectava, por cada 100 habitantes, 16 pessoas no Quénia, 21 na Nova Guiné Papua, 33 na Zâmbia (PNUD, 1999).

Ver Stallings (1992b). Da perspectiva das relaçőes internacionais, ver Durand, Lévy, Retaillé (1993).

Cfr. Featherstone (1990); Appadurai (1990); Berman (1983); W. Meyer (1987); Giddens (1990, 1991); Bauman (1992). Ver também Wuthnow (1985, 1987); Bergesen (1980).

Ver também Featherstone (1990: 10); Wallerstein (1991a: 184); Chase-Dunn (1991: 103). Para Wallerstein o contraste entre o sistema-mundial moderno e os impérios mundiais anteriores reside no facto de o primeiro combinar uma única divisăo do trabalho com um sistema de Estados independentes e de sistemas culturais múltiplos (Wallerstein, 1979: 5).

Sobre esta questăo, ver Stallings (1995) em que săo analisadas as respostas regionais da América Latina, do Sudeste Asiático e da África sub-sahariana ŕs pressőes globais. Ver também Boyer (1998) e Drache (1999)

Entre muitos outros, ver Boyer (1996, 1998); Drache (1999).

Sobre os conceitos de turbulęncia de escalas e de explosăo de escalas, ver Santos (1996).

Cfr. também McMichael (1996: 169). A dialéctica da inclusăo e da exclusăo é particularmente visível no mercado global da comunicaçăo e da informaçăo. Com excepçăo da África do Sul, o continente africano é, para este mercado, um continente inexistente.

O globalismo localizado pode ocorrer sob a forma do que Fortuna chama "globalizaçăo passiva", a situaçăo em que "algumas cidades se vęem incorporadas de modo passivo nos meandros da globalizaçăo e săo incapazes de fazer reconhecer aqueles recursos [globalizantes próprios] no plano transnacional" (1997: 16).

A ideia do cosmopolitismo como universalismo, cidadania do mundo, negaçăo das fronteiras políticas e territoriais, tem uma longa tradiçăo na cultura ocidental, da lei cósmica de Pitágoras e a philallelia de Demócrito ao "Homo suum, humani nihil a me alienum puto" de Teręncio, da res publica christiana medieval aos humanistas da Renascença, da ideia de Voltaire para quem "para ser bom patriota [é] necessário tornar-se inimigo do resto do mundo" até ao internacionalismo operário.

A distinçăo entre o material e o simbólico năo deve ser levada para além de limites razoáveis já que cada um dos pólos da distinçăo contém o outro (ou alguma dimensăo do outro), ainda que de forma recessiva. O "mais" material a que me refiro săo basicamente os direitos económicos e sociais conquistados e tornados possíveis pelo Estado-Providęncia: os salários indirectos, a segurança social, etc. O "mais" simbólico inclui, por exemplo, a inclusăo na ideologia nacionalista, ou na ideologia consumista e a conquista de direitos desprovidos de meios eficazes de aplicaçăo. Uma das consequęncias da globalizaçăo hegemónica tem sido a crescente erosăo do "mais" material, compensada pela intensificaçăo do "mais" simbólico.

Analiso esta questăo no meu estudo sobre o orçamento participativo em Porto Alegre (Santos, 1998a).

Sobre o património comum da humanidade, ver, entre muitos outros, Santos (1995: 365-373) e o estudo exaustivo de Pureza (1999).

Sobre a globalizaçăo de-baixo-para-cima ou contra-hegemónica, ver Hunter (1995); Kidder e McGinn (1995). Ver também Falk (1995 e 1999). Ambos os trabalhos visam as coligaçőes e redes internacionais de trabalhadores que emergiram do NAFTA.

No mesmo sentido, é sugerido que os movimentos progressistas devem usar os instrumentos do nacionalismo económico para combater as forças do mercado.

Sobre os conceitos de democracia de alta intensidade e de democracia de baixa intensidade, ver Santos (1998b) e Santos (2000b).

Sobre este ponto, cfr. Santos (1997).

Ver, por todos, Castells (1996).

Este fenómeno está analisado em detalhe em Santos (2000b).

Sobre este "movimento" da reforma global dos tribunais, ver Santos (2000b).

Wallerstein (1991a); Hopkins et al. (1996). Ver também Arrighi e Silver (1999).

Aglietta (1979); Boyer (1986, 1990). Ver também Jessop (1990a, 1990b); Kotz (1990); Mahnkopf (1988); Noel (1987); Vroey (1984).

Sobre estas tręs estratégias do Estado moderno, ver Santos (1995: 99-109).

Apesar de considerarem a globalizaçăo um fenómeno velho, alguns dos teóricos do sistema mundial, como é o caso de Wallerstein, perfilham leituras paradigmáticas a partir de análises sistémicas, nomeadamente da análise da sobreposiçăo de pontos de ruptura nos diferentes processos de longa duraçăo que constituem o sistema mundial moderno.

A justificaçăo desta posiçăo é apresentada noutro lugar (Santos, 1995, 2000a).

Published 22 August 2002
Original in Portuguese

Contributed by Revista Crítica de Cięncias Sociais © Boaventura de Sousa Santos eurozine

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Read in: EN / PT

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