"Esta língua é fel com mel"

Álvaro Alves de Faria (org.)
Brasil 2000. Antologia de Poesia Contemporânea Brasileira
Coimbra: alma azul, 2000

Ao ler este conjunto de poemas, sinto-me assim como que a revisitar o Brasil, revisitando o seu quotidiano, mas sobretudo revisitando-o através desta língua que partilhamos e que, para o bem e para o mal, nos faz, sempre e simultaneamente, o Mesmo e o Outro ‹ também de nós próprios. É deste modo que “a gente” vai construindo as nossas identidades culturais e que, por isso mesmo, são identidades sempre “difíceis de encontrar”, como bem refere, na sua breve introdução, Álvaro Alves de Faria, organizador desta obra.Brasil 2000. Antologia de Poesia Contemporânea Brasileiraapresenta-nos uma selecção de poemas que, mais do que os Quinhentos Anos de História recentemente tão festejados (de forma hipócrita, quase sempre), nos traz a contemporaneidade de um país e de uma língua a fazer-se. Como tudo, de resto, no espaço-tempo deste nosso universo e desta nossa História ainda e sempre por terminar. É sobre essa incompletude essencial da criação, visível matéria do acto sagrado do amor, que Carlos Nejar nos diz, em poema incluído nesta colectânea:

Nossa Sabedoria é a dos Rios

Nossa sabedoria é a dos rios.
Não temos outra.
Persistir. Ir com os rios,
onda a onda.

Os peixes cruzarão nossos rostos vazios.
Intactos passaremos sob a correnteza
feita por nós e o nosso desespero.
Passaremos límpidos.

E nos moveremos,
rio dentro do rio,
corpo dentro do corpo,
como antigos veleiros.

( Brasil 2000: 56)

Este o nosso espaço-tempo, felizmente ainda por terminar, como nos ensinam Santo Agostinho e a sua Queda Feliz ‹ a queda que nos concede a co-primordialidade da criação e da arte, mas sobretudo a queda que nos permite o livre arbítrio do acto e da participação. É neste sentido que essa procura difícil pela identidade cultural de que nos fala Álvaro Alves de Faria me surge como algo extremamente positivo e, sem dúvida, como mais um traço comum muito especial a reconhecer em Portugal e no Brasil. A nossa consciência do incompleto, a nossa consciência do ainda por descobrir ‹ esse mar procurado por tantos rios do pensamento, para recuperar a metáfora de Nejar ‹ será eventualmente o motor que nos leva à procura permanente da nossa História e do lugar da nossa passagem dentro dela. Mas é também essa consciência que nos leva à insatisfação permanente com os modelos fechados que a linguagem do senso-comum e do consenso sempre se dispõe a oferecer-nos. Talvez seja por isso mesmo que as nossas poesias ‹ e deixem-me, por favor, usar o plural! ‹ que as nossas escritas, permanecem tão pujantes. Porque a consciência da incompletude e a procura pelo que somos (que inclui a procura pelo que fomos e pelo que seremos) implicam um processo de permanente ruptura e transgressão, um processo que é a grande responsabilidade do artista e do poeta. “Responsabilidade é manter a capacidade de resposta”, dizia o poeta norte-americano Robert Duncan, indo assim ao encontro do depoimento de Roberto Piva, outro dos poetas incluídos nesta antologia de poesia contemporânea brasileira: “A poesia é um salto no escuro como o amor. Por isso, meus leitores preferidos são os heréticos de todas as escolas & os transgressores de todas as leis morais & sociais [Š] Só acredito em poema experimental que tenha vida experimental” ( Brasil 2000: 6). Esta forma de exercer o poético é, em meu entender, a forma mais radical de exercer o político e é precisamente esta forma de poética e esta forma de política que esta antologia de 40 poetas brasileiros nos procura trazer. Porque, hoje mais do que nunca, como afirma outra poeta norte-americana, “já não podemos ignorar a ideologia. Ela tornou-se uma forma de lírica muito importante” (Lyn Hejinian. My Life). Contra uma concepção elitista que defende a erudição ou a sensibilidade aristocrática e bem-pensante como formas únicas de chegar ao poético, mas também contra o esvaziamento de um epigonismo pretensamente vanguardista do “tanto faz”, nesta antologia procura-se apresentar e divulgar algum do muito que de bom fica tantas vezes fora da rigidez ou da distracção dos cânones vigentes, sejam eles do mundo académico ou do mundo dos media. Contra o lirismo e contra o contra-lirismo ideológicos dominantes, apresentam-se poetas que não querem, porque sabem que não podem, estar fora ‹ ou acima ‹ da sua sociedade ou da sua História: antes de mais, porque a linguagem, esse material a que dão forma, se coze nos fornos dessa mesma História em que se descobrem. Numa antologia em que a poesia escrita no feminino foi uma das prioridades do organizador, eis como a voz da mulher se reinventa em Ilka Brunhilde Laurito, uma voz a libertar-se dos gestos com que a História a tem como imagem parada e prisioneira:

Egipcíaca I

Sou uma bailarina egípcia
num vaso de terracota.
Os meus passos se limitam
entre a base, o bojo e as bordas.

[Š]

Dei ao oleiro do eterno
minha carne, o sangue, o sexo.
Minha dança permanece:
o que morreu foram os gestos.

( Brasil 2000: 93)

Até a inutilidade dos poetas e da poesia é um fenómeno histórico, claramente inscrito nessa ruptura epistemológica que o racionalismo iluminista dos séculos XVII e XVIII significou: a ruptura entre o discurso da Razão (doravante apanágio da Ciência e do seu conhecimento) e o discurso da Imaginação, do sentimento e da emoção (doravante o único reconhecido às Artes, às Letras e às Humanidades ‹ e à superstição!Š). Neste sentido, podemos dizer que é provavelmente a inutilidade do poético para os tempos modernos que o torna hoje (e desde os movimentos modernistas dos finais do século XIX) tão útil: quando, um pouco por todo o lado, novos movimentos sociais questionam as promessas dessa modernidade ou, melhor dizendo, desse modelo de modernidade. Na história do humano, o poeta surge como bardo, o indivíduo representativo que conhece, porque a vive, a experiência e a história da sua comunidade; mas há um outro conhecimento que é seu e do qual depende a sua utilidade e função social: seu é o conhecimento da linguagem e das técnicas para a trabalhar. É com esse conhecimento que o poeta dá forma à história da tribo e à experiência da sua comunidade, dessa história e dessa experiência se tornando o guardião ‹ para as passar aos vindouros, porque dela dependerá a sobrevivência. De um país, onde um dos novos movimentos sociais, a que fiz referência, se chama precisamente “Movimento dos Sem-Terra”, diz Celso de Alencar num poema cujo título surge, neste contexto, de forma deveras sugestiva, “O Homem da Terra”:

Eu sou um homem da terra.
Também são da terra e nela permanecem
os filhos e o amor nascidos de mim.

Meu queixo e meus dedos esquerdos
dizem que eu sou um homem da terra.

Eu vivi por muitos anos
nos campos onde o vento conduz
bois e lavouras para a morte.

A terra por sua natureza é fiel
e doa para quem nela se estabelece
o primeiro segredo de Deus e o sexo juvenil.

Sei tudo o que eu faço ou falo
é porque eu sou um homem da terra.

Por tudo aquilo que corre dentro de mim
eu afirmo que a pureza da minha língua
foi herdada dos tempos em que
fui plantador de grãos.

A terra ensinou-me a caminhar sobre as fogueiras
e a contar histórias de como nascem as plantas.

Eu sou um homem da terra
e sobre ela deposito meus pés.

( Brasil 2000: 62)

Mas, não o esqueçamos, o poeta é também o feiticeiro, o xamã, aquele que conhece as fórmulas mágicas (na linguagem) para alterar o real. Estes são os poetas de que hoje necessitamos e é preciso devolver esta sua importantíssima função à sociedade ‹ porque se trata de uma questão de sobrevivência, porque é necessário que a tribo seja capaz de se renovar e recriar. Parece-me ser esta a preocupação subjacente à organização da antologia Brasil 2000. Trata-se de uma obra em que Álvaro Alves de Faria procura apresentar-nos a multiplicidade de vozes e de identidades que ficam fora (ou que ficam menos visíveis) perante a poderosíssima visão oferecida pelo discurso e/ou cânone literário dominantes ‹ uma oferta de que recebemos, recentemente, um flagrante e perverso exercício em Comemorações da nossa História comum: uma História de, chamemos-lhe eufemisticamente, “apagamento” dos índios. E recupero o início do meu texto: na transgressão do senso-comum (o impingido pelas hierarquias histórico-literário-científicas incluído), na transgressão que implica o reconhecimento da imcompletude e da necessidade da procura perante a imensa e inesgotável possibilidade e multiplicidade do humano, reside a responsabilidade do poético ‹ que é a responsabilidade de re-escrever, re-inventando, os mitos da tribo; a responsabilidade de re-escrever, re-inventando, outras ordens para o mundo e para a História. Precisamos de devolver o poético ao espaço público, ao espaço do cidadão-comum e da cidadã-comum. E precisamos assim, também, de re-inventar a imaginação das nossas identidades: sociais, linguísticas e culturais, como parece afirmar José Nêumanne Pinto em “A Seara de Saramago”, um poema onde o “mel” do encontro e da descoberta se funde com o “fel” da crueldade e da violência, não se permitindo deste modo que a imaginação do achamento se transforme num apagamento da História do que fomos e do que somos:

Esta língua é minha semente,
machado de mulato do morro,
pátria de poeta lisboeta.

Esta língua é minha visão,
o sol do soldado caolho,
a mão do soldado maneta.

Esta língua é minha música
na palavra do padre pregador,
no pássaro do padre voador.

[Š]

Esta língua é fel com mel,
cantigas a palo seco
de ninar o futuro.

Esta língua é meu coracão,
na tortura, na paixão
e no sal amargo da purificação.

Esta língua é jóia africana,
ela caça a onça caetana,
ela cruza a légua tirana.

[Š]

Esta língua é meu berço,
esta língua me conhece,
esta língua é meu caixão.

( Brasil 2000: 102-103)

Como já referi, Portugal e o Brasil parecem ocupar hoje uma posição privilegiada neste tipo de demanda poética. Com efeito, depois do trabalho de investigação realizado, não só no Brasil, mas também nos EUA, no âmbito das ciências sociais e da emigração, a justificação que se me oferece para tal facto prende-se com razões de ordem económica que passam pela organização do chamado sistema-mundo e pela tão falada globalização. Encontrando-se Portugal e o Brasil numa posição semiperiférica, isto é, uma posição intermédia e de intermediação entre os países centrais (economicamente mais desenvolvidos) e os países periféricos, podemos afirmar, com Boaventura de Sousa Santos, que, quer num caso, quer no outro, vivemos hoje uma pós-modernidade sem que tivéssemos verdadeiramente passado pela experiência da modernidade. Vivemos por isso, e paradoxalmente, uma espécie de “pré-‘pós-modernidade'”, que permite situações como a vivida, e tão discutida, situação da literatura brasileira do século XX: uma literatura reconhecida pelo cânone literário mundial como uma literatura que se encontra de acordo com a mais radicalmente inovadora vertente literária dos países centrais, mas que paira acima (à frente, ou à margem, como se queira entendê-lo) da realidade económica, social e política do Brasil ‹ uma realidade que assenta numa brutal diferença de distribuição de riqueza, mais de acordo com o que se passa em países periféricos do sistema-mundo. Ciente da diferença de escala e da provocação que isto possa significar, apetece-me dizer que a situação inversa é igualmente verdadeira no actual contexto literário português, onde as preocupações literárias assentam sobretudo no respeito pela tradição e pelas convenções dos “grandes nome” da literatura portuguesa e onde críticos importantes e responsáveis aparecem nos mediaa desancar, displicentes, a inovação e o experimentalismo, entediando-se com “o que se faz lá fora”, “que não interessa”, “porque não se entende”. Assim se deixam completamente invisíveis muitos dos representantes da mais interessante e inovadora geração da poesia portuguesa, que procuram dar voz à sua História de herança revolucionária recente e abrupta transformação para a qual contribui ainda um processo acelerado de modernização de um país cujos mitos urge reinventar para que lhes possa chamar seus. É pois esta posição semiperiférica, em meu entender, a responsável por uma contínua questionação do “melhor dos mundos” que a modernidade nos prometeu e promete. Entre “colonialismos suaves”, pouco gloriosas histórias de pobreza e emigração, e “retóricas de irmandade”, a construção das nossas identidades culturais tem sido uma ‹ às vezes penosa, outras vezes prazenteira ‹ negociação de discursos sobre a História. A antologia de poemas que Álvaro Alves de Faria nos apresenta não poderia por isso deixar de incluir poemas sobre Portugal, a nossa História, a nossa literatura, a nossa língua. Mas o coração do brasileiro sabe que ao passado só se vai agora de visita e que lhe toca despedir-se para poder olhar em outra direcção, como parece afirmar Bruno Tolentino neste soneto:

No Embarcadeiro da Volta

Em Portugal, onde anda um sol que se demora
a diluir uma erosão crepuscular;
no embarcadeiro dos fantasmas a esticar
constantemente o coração que se evapora,

que busca a luz que vem de dentro para fora
e nunca a luz das coisas como são; no pomar
da árvore de ouro, nem a árvore agora
nem a outra, a ancestral cansada de durar;

em Portugal, o lugar do velho escoadouro
de todo um continente, deste Ocidente inteiro,
terminal das paixões peregrinas primeiro

e enfim partida aos precipícios do vindouro,
é ali que toca ao coração do brasileiro
despedir-se da Europa e entender-se com o touro.

( Brasil 2000: 46-7)

É sobretudo este Brasil que não é nosso, este Brasil que é outra coisa ‹ que é vosso, dos brasileiros ‹ esse Brasil do ano 2000, ainda com toda a riqueza e toda a diversidade da selva onde a criação se faz inesgotável, que nos é apresentado neste livro. A minha é, pois, uma visão optimista da selva, uma visão que quero deixar em gesto solidário com o organizador desta antologia, o poeta brasileiro, filho de portugueses, Álvaro Alves de Faria. Tal como no poema de Mário Chamie com que vou finalizar, espero que este optimismo sirva de contraponto à sua angústia perante a selva humana e a selva da natureza hoje em risco no Brasil ‹ um Brasil cujo conhecimento e, sobretudo, reconhecimento da sua diferença se tornam, para nós, portugueses, uma questão de exigência histórica:

Objecto Selvagem

No espaço do campo, passa o homem e a sua miragem.
No espaço da cidade, dorme o homem em sua passagem.
No espaço da consciência, gera o vírus a sua voragem.
Por todos esses espaços, de surda força indomável,
passa o espaço da palavra com sua selva sem margem.
Na selva dessa paisagem, no centro de sua arena,
age a força do poema, meu objecto selvagem.

( Brasil 2000: 113)

Published 1 October 2001
Original in Portuguese
First published by Revista Crítica de Ciências Sociais

Contributed by Revista Crítica de Ciências Sociais © Graça Capinha / Revista Crítica de Ciências Sociais / Eurozine

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