Para ampliar o cânone democrático

Este texto foi escrito por dois autores cuja língua nativa é o português. Porém, um deles escreve e fala o português ibérico e outro, o português do Brasil. Fiel ao princípio do reconhecimento da diferença, que é central à concepção deste projecto, a edição brasileira deste texto seguirá a ortografia e o estilo do português do Brasil e a edição portuguesa seguirá a ortografia e o estilo do português ibérico.

Quando recentemente perguntaram a Amartya Sen qual tinha sido o acontecimento mais importante do século XX respondeu sem hesitação: a emergência da democracia (1999: 3). Com uma visão mais pessimista do século XX, também Immanuel Wallerstein se perguntava recentemente como é que a democracia tinha passado de uma aspiração revolucionária no século XIX a um slogan adoptado universalmente mas vazio de conteúdo no século XX (2001: 1). Estas duas posições, apesar de muito divergentes, convergem na constatação de que a democracia assumiu um lugar central no campo político durante o século XX. Se continuará a ocupar esse lugar neste século é uma questão em aberto.

O século XX foi efectivamente um século de intensa disputa em torno da questão democrática. Essa disputa, travada no final de cada uma das guerras mundiais e ao longo do período da guerra fria, envolveu dois debates principais.


Na primeira metade do século, o debate centrou-se em torno da desejabilidade da democracia (Weber, 1919; Schmitt, 1926; Kelsen, 1929; Michels, 1949; Schumpeter, 1942).1 Se, por um lado, tal debate foi resolvido em favor da desejabilidade democracia como forma de governo, por outro lado, a proposta que se tornou hegemónica no final das duas guerras mundiais implicou uma restrição das formas de participação e soberania ampliadas em favor de um consenso em torno de um procedimento eleitoral para a formação de governos (Schumpeter, 1942). Essa foi a forma hegemónica de prática da democracia no pós-guerra, em particular nos países que se tornaram democráticos após a segunda onda de democratização.

Um segundo debate permeou a discussão em torno da democracia no pós-segunda guerra mundial: trata-se do debate acerca das condições estruturais da democracia (Moore, 1966; O’Donnell, 1973; Przeworski, 1985) que foi também um debate sobre a compatibilidade ou incompatibilidade entre a democracia e o capitalismo (Wood, 1996).2 Barrington Moore inaugurou esse debate nos anos 1960 através da introdução de uma tipologia de acordo com a qual se poderia indicar os países com propensão democrática e os países sem propensão democrática. Para Moore, um conjunto de características estruturais explicariam a baixa densidade democrática na segunda metade do século XX: o papel do Estado no processo de modernização e sua relação com as classes agrárias; a relação entre os sectores agrários e os sectores urbanos e o nível de ruptura provocado pelo campesinato ao longo do processo de modernização (Moore, 1966). O objectivo de Moore era explicar por que a maior parte dos países não eram democráticos nem poderiam vir a sê-lo senão pela mudança das condições que neles prevaleciam.

Entretanto, um segundo debate se articulava com o dos requisitos estruturais da democracia – o debate sobre as virtualidades redistributivas da democracia. Tal debate partia do pressuposto que, na medida em que certos países venciam a batalha pela democracia, junto com a forma de governo eles passavam a usufruir de uma certa propensão distributiva caracterizada pela chegada da social democracia ao poder (Przeworski, 1985). Haveria, portanto, uma tensão entre capitalismo e democracia, tensão essa que, uma vez resolvida a favor da democracia, colocaria limites à propriedade e implicaria ganhos distributivos para os sectores sociais desfavorecidos. Os marxistas, por seu lado, entendiam que essa solução exigia a descaracterização total da democracia uma vez que nas sociedades capitalistas não era possível democratizar a relação fundamental em que se assentava a produção material – a relação entre o capital e o trabalho. Daí que, no âmbito desse debate, se discutissem modelos de democracia alternativos ao modelo liberal: a democracia participativa, a democracia popular nos países da Europa de Leste, a democracia desenvolvimentista dos países recém-chegados à independência.

A discussão democrática da última década do século XX mudou os termos do debate democrático do pós-guerra. A extensão do modelo hegemónico, liberal, para o Sul da Europa ainda nos anos 1970 e, posteriormente, para a América Latina e a Europa do Leste (O’Donnell, Schmitter e Whitehead, 1986) tornou desactualizadas as análises de Moore e de Przeworski. Parecem pouco actuais as perspectivas sobre a democracia da segunda metade do século XX, com as suas discussões sobre os impedimentos estruturais da democracia, na medida em que passamos a ter muitas dezenas de países em processo de democratização, países esses com enormes variações no papel do campesinato e nos seus respectivos processos de urbanização. Amartya Sen é um dos que celebra a perda de credibilidade da ideia das condições estruturais quando afirma que a questão não é a de saber se um dado país está preparado para a democracia, mas antes partir da ideia que qualquer país se prepara através da democracia (Sen, 1999: 4). Por outro lado, com o desmonte do Estado-Providência e com os cortes das políticas sociais a partir da década de 1980, também pareceram desconfirmadas as análises de autores como Przeworski ou Lipset acerca dos efeitos distributivos irreversíveis da democracia. Reabre-se, assim, a discussão sobre o significado estrutural da democracia em particular para os chamados países em desenvolvimento ou países do Sul.

À medida que o debate sobre o significado estrutural da democracia muda os seus termos, uma segunda questão parece também vir à tona: o problema da forma da democracia e da sua variação. Essa questão recebeu a sua resposta mais influente na solução elitista proposta por Joseph Schumpeter, de acordo com a qual o problema da construção democrática em geral deveria derivar dos problemas enfrentados na construção da democracia na Europa no período de entre-guerras. A partir dessa resposta funda-se o que poderíamos chamar de concepção hegemónica da democracia. Os principais elementos dessa concepção seriam a tão apontada contradição entre mobilização e institucionalização (Huntington, 1969; Germani, 1971); a valorização positiva da apatia política (Downs, 1956), uma idéia muito salientada por Schumpeter para quem o cidadão comum não tinha capacidade ou interesse político senão para escolher os líderes a quem incumbiria tomar as decisões (1942: 269); a concentração do debate democrático na questão dos desenhos eleitorais das democracias (Lijphart, 1984); o tratamento do pluralismo como forma de incorporação partidária e disputa entre as elites (Dahl, 1956; 1971) e a solução minimalista ao problema da participação pela via da discussão das escalas e da complexidade (Bobbio, 1986; Dahl, 1991). Todos esses elementos que poderiam ser apontados como constituintes de uma concepção hegemónica da democracia não conseguem enfrentar adequadamente o problema da qualidade da democracia que voltou à superfície com a chamada “terceira onda de democratização”. Quanto mais se insiste na fórmula clássica da democracia de baixa intensidade, menos se consegue explicar o paradoxo de a extensão da democracia ter trazido consigo uma enorme degradação das práticas democráticas. Alias, a expansão global da democracia liberal coincidiu com uma crise grave desta nos países centrais onde mais se tinha consolidado, uma crise que ficou conhecida como a dupla patologia: a patologia da participação, sobretudo em vista do aumento dramático do abstencionismo; e a patologia da representação, o facto dos cidadãos se considerarem cada vez menos representados por aqueles que elegeram. Ao mesmo tempo, o fim da guerra fria e a intensificação dos processos de globalização implicaram uma reavaliação do problema da homogeneidade da prática democrática.

A variação na prática democrática é vista com maior interesse no debate democrático actual rompendo com as adjectivações próprias do debate político do período da guerra fria – democracias populares versus democracias liberais. Simultanea e paradoxalmente, o processo de globalização3 suscita uma nova ênfase na democracia local e nas variações da forma democrática no interior do Estado nacional, permitindo a recuperação de tradições participativas em países como o Brasil, a Índia, Moçambique e a África do Sul, para nos restringirmos aos países estudados neste projecto. Podemos, portanto, apontar na direcção de uma tripla crise da explicação democrática tradicional: há, em primeiro lugar, uma crise do marco estrutural de explicação da possibilidade democrática (Moore, 1966); há, em segundo lugar, uma crise da explicação homogeneizante sobre a forma da democracia que emergiu como resultado dos debates do período de entre-guerras (Schumpeter, 1942); e há, em terceiro lugar, uma nova propensão para se examinar a democracia local e a possibilidade de variação no interior dos Estados nacionais a partir da recuperação de tradições participativas solapadas no processo de construção de identidades nacionais homogéneas (Anderson, 1991).

Nesta introdução, pretendemos dar um passo além mostrando que o debate democrático ao longo do século XX ficou preso em duas formas complementares de hegemonia4: uma primeira forma de hegemonia baseada na suposição de que a solução do debate Europeu do período de entre-guerras teria sido o abandono do papel da mobilização social e da acção colectiva na construção democrática (Huntington, 1969); uma segunda forma de hegemonia é aquela que supunha que a solução elitista para o debate democrático, com a consequente sobrevalorização do papel dos mecanismos de representação, poderia tornar-se hegemónica sem que estes últimos precisassem de se combinar com mecanismos societários de participação (Manin, 1997). Em ambos os casos, a forma hegemónica da democracia, a democracia representativa elitista, propõe uma extensão para o resto do mundo do modelo de democracia liberal-representativa vigente nas sociedades do hemisfério Norte, ignorando as experiências e as discussões oriundas dos países do Sul no debate democrático. A partir de uma reconstrução do debate democrático da segunda metade do século XX, pretendemos propor um itinerário contra-hegemónico para o debate democrático, resgatando aquilo que ficou nas entrelinhas desse debate nesse período.

A concepção hegemónica da democracia na segunda metade do século XX

O debate democrático da primeira metade do século XX foi marcado pelo enfrentamento entre duas concepções de mundo e sua relação com o processo de modernização do Ocidente. De um lado, a concepção que C. B. Macpherson baptizou de liberal-democracia (Macpherson, 1966) e de outro uma concepção marxista de democracia que entendia a autodeterminação no mundo do trabalho como o centro do processo de exercício da soberania por parte de cidadãos entendidos como indivíduos-produtores (Pateman, 1970). Desse enfrentamento surgiram as concepções hegemónicas no interior da teoria democrática que passaram a vigorar na segunda metade do século XX. Essas concepções estão relacionadas com a resposta dada a três questões: a da relação entre procedimento e forma; a do papel da burocracia na vida democrática; e a inevitabilidade da representação nas democracias de grande escala. Permitam-nos examinar em detalhes cada uma dessas respostas.

A questão da democracia como forma e não como substância foi a resposta dada pela teoria democrática hegemónica às críticas feitas pela teoria marxista à democracia (Marx, 1871; Lenin, 1917). Hans Kelsen formulou essa questão em termos neo-kantianos ainda na primeira metade do século XX. Para ele, o central era criticar a ideia de que a democracia poderia corresponder um conjunto preciso de valores e uma forma única de organização política:

[Q]uem considera inacessíveis ao conhecimento humano a verdade absoluta e os valores absolutos deve considerar possível não apenas a própria opinião, mas também a opinião alheia. Por isso, o relativismo é a concepção do mundo suposta pela ideia de democracia. […] A democracia dá a cada convicção política a mesma possibilidade de exprimir-se e de buscar o ânimo dos homens através da livre concorrência. Por isso, o procedimento dialéctico adoptado pela assembleia popular ou pelo parlamento na criação de normas, procedimento esse que se desenvolve através de discursos e réplicas, foi oportunamente conhecido como democrático (Kelsen, 1929:105-6).

Na sua primeira formulação, o procedimentalismo kelsiano tentou articular relativismo moral com métodos para solução de divergências, métodos que passavam pelo parlamento, assim como por formas mais directas de expressão (Kelsen, 1929: 142). Neste relativismo moral anunciava-se a redução do problema da legitimidade ao problema da legalidade, uma redução que Kelsen extraiu de uma leitura incorrecta de Weber. Coube a dois autores, Joseph Schumpeter e Norberto Bobbio, durante o período de entre-guerras e o imediato pós-guerra, transformar o elemento procedimentalista da doutrina kelsiana da democracia numa forma de elitismo democrático.

Schumpeter toma como ponto de partida para a sua reflexão o mesmo elemento que iria desencadear a reflexão política de Bobbio: o questionamento da ideia de uma soberania popular forte associada a um conteúdo de sociedade proposta pela doutrina marxista. Schumpeter critica esse elemento ao colocar no seu clássico livro Capitalismo, Socialismo e Democracia a seguinte pergunta: é possível que o povo governe? A resposta dada por Schumpeter é clara e envolve um desenvolvimento do argumento procedimental. Para ele, não podemos pensar na soberania popular como um posicionamento racional pela população ou por cada indivíduo acerca de uma determinada questão. Portanto, o elemento procedimental da democracia já não é a forma como o processo de tomada de decisões remete para soberania popular. Para Schumpeter o processo democrático é justamente o contrário: “um método político, isto é, um certo tipo de arranjo institucional para se chegar a decisões políticas e administrativas” (Schumpeter, 1942: 242). Deste modo, Schumpeter toma uma preocupação procedimental com as regras para a tomada de decisão e transforma-a num método para a constituição de governos. O motivo pelo qual a participação é excluída desse processo não faz parte da argumentação procedimental e sim de uma teoria da sociedade de massas que Schumpeter contrabandeia para o interior da discussão procedimental.5
Norberto Bobbio dá o passo seguinte ao transformar o procedimentalismo em regras para a formação do governo representativo. Para ele, a democracia se constitui num conjunto de regras para a constituição de maiorias, entre as quais valeria a pena destacar o peso igual dos votos e a ausência de distinções económicas, sociais, religiosas e étnicas na constituição do eleitorado (Bobbio, 1979). Vale a pena, portanto, perceber que a primeira via de afirmação da concepção hegemónica de democracia no pós-guerra é uma via que leva do pluralismo valorativo à redução da soberania e, em seguida, à passagem de uma discussão ampla sobre as regras do jogo democrático à identificação da democracia com as regras do processo eleitoral. Em nenhum momento fica claro o itinerário que vai de Kelsen até Schumpeter e Bobbio porque o procedimentalimo não comporta formas ampliadas de democracia.6 Pelo contrário, a redução do procedimentalismo a um processo de eleições de elites parece um postulado ad hoc da teoria hegemónica da democracia, postulado esse incapaz de dar uma solução convincente a duas questões principais: a questão de saber se as eleições esgotam os procedimentos de autorização por parte dos cidadãos e a questão de saber se os procedimentos de representação esgotam a questão da representação da diferença. Voltaremos a esses pontos mais adiante, ao discutirmos as novas formas de procedimentalismo participativo que emergiram nos países do Sul.

Uma segunda discussão foi central na consolidação da concepção hegemónica de democracia que foi a forma como a burocracia e sua indispensabilidade foi sendo trazida para o centro da teoria democrática. A origem desse debate também remete ao período de entre-guerras e ao debate entre liberalismo e teoria marxista. Max Weber inaugurou essa linha de questionamento da teoria clássica da democracia ao colocar, no interior do debate democrático do início do século XX, a inevitabilidade da perda de controle sobre o processo de decisão política e económica pelos cidadãos e seu controle crescente por formas de organização burocrática. O motivo principal pelo qual a concepção de Rousseau de uma gestão participativa não prevaleceu foi a emergência de formas complexas de administração estatal que levaram à consolidação de burocracias especializadas na maior parte das arenas geridas pelo Estado moderno. Para Weber, “a separação do trabalhador dos meios materiais de produção, destruição, administração, pesquisa académica e finanças em geral é a base comum do Estado moderno, nas suas esferas política, cultural e militar” (Weber, 1978, II: 1394). A colocação de Weber, que está em diálogo directo com as formulações de Marx em A Guerra Civil na França, é uma tentativa de mostrar que o surgimento da burocracia não decorre da organização de classe da sociedade capitalista, nem é um fenómeno restrito à esfera da produção material. Para Weber, a burocracia está ligada ao surgimento e desenvolvimento do Estado moderno e a separação entre trabalhadores e meios de produção constitui um fenómeno geral e abrangente que envolve não apenas os trabalhadores, mas também os militares, os pesquisadores científicos e todos os indivíduos envolvidos em actividades complexas no campo da economia e do Estado. A colocação de Weber, no entanto, não tinha a intenção de associar realismo sociológico e desejabilidade política. Pelo contrário, para Weber o fenómeno da complexidade colocava problemas ao funcionamento da democracia na medida em que criava uma tensão entre soberania crescente, no caso o controle dos governos pelos governados, e soberania decrescente, no caso o controle dos governados pela burocracia. Daí o pessimismo de Weber face à dupla emergência da “jaula de ferro” do “mundo administrado” e do perigo de acções emotivo-passionais instigadoras de novos poderes carismáticos.

Ao longo da segunda metade do século XX, a discussão sobre complexidade e a inevitabilidade da burocracia foi-se fortalecendo na mesma medida em que as funções do Estado também foram crescendo com a instituição do welfare state nos países europeus (Esping-Anderson, 1990; Shonfield e Shonfield, 1984). Com o crescimento das funções do Estado ligadas ao bem-estar social, a discussão sobre a desejabilidade do crescimento da burocracia foi mudando de tom e adquirindo uma conotação positiva (a excepção aqui é a obra de Michel Foucault). No campo da teoria democrática, Norberto Bobbio foi, mais uma vez, o autor que sintetizou a mudança de perspectiva em relação a desconfiança weberiana com o aumento da capacidade de controle da burocracia sobre o indivíduo moderno. Para Bobbio,

[N]a medida em que as sociedades passaram de uma economia familiar para uma economia de mercado, de uma economia de mercado para uma economia protegida, regulada e planificada, aumentaram os problemas políticos que requerem competências técnicas. Os problemas técnicos exigem, por sua vez, peritos, especialistas. […] Tecnocracia e democracia são antitéticas: se o protagonista da sociedade industrial é o especialista, impossível que venha a ser o cidadão comum (Bobbio, 1986: 33-34).

Ou seja, Bobbio radicaliza o argumento weberiano ao afirmar que o cidadão, ao fazer a opção pela sociedade de consumo de massas e pelo Estado de bem-estar social, sabe que está a abrir mão do controle sobre as actividades políticas e económicas por ele exercidas em favor de burocracias privadas e públicas. No entanto, uma questão não parece resolvida pelos teóricos que argumentam pela substituição dos mecanismos de exercício da soberania por parte dos cidadãos pelo aumento do controle da burocracia sobre a política. Trata-se do cepticismo sobre a capacidade das formas burocráticas de gestão de lidarem com a criatividade e de absorverem o conjunto das informações envolvidas na gestão pública (Domingues, 1997; Fung e Wright, 2002). As formas burocráticas descritas por Weber e Bobbio são monocráticas na forma com gerem o pessoal administrativo e na forma como advogam uma solução homogeneizante para cada problema enfrentado em cada jurisdição. Ou seja, a concepção tradicional de gestão burocrática advoga uma solução homogénea para cada problema, a cada nível da gestão administrativa, no interior de uma jurisdição administrativa. No entanto, os problemas administrativos exigem cada vez mais soluções plurais, nas quais a coordenação de grupos distintos e soluções diferentes ocorrem no interior de uma mesma jurisdição (Sabel e Zeitlin, 1997). O conhecimento detido pelos actores sociais passa, assim, a ser um elemento central não apropriável pelas burocracias para a solução de problemas de gestão. Ao mesmo tempo, torna-se cada vez mais claro que as burocracias centralizadas não têm condição de agregar ou lidar com o conjunto das informações necessárias para a execução de políticas complexas nas áreas sociais, ambiental ou cultural (Sabel e Karrkainen, 2000). Aí residiria o motivo da reinserção no debate democrático dos designados “arranjos participativos”.

Há ainda um terceiro elemento que faz parte da concepção hegemónica da democracia que é a percepção de que a representatividade constitui a única solução possível nas democracias de grande escala para o problema da autorização. Robert Dahl foi, entre os autores do pós-guerra, o que defendeu essa posição com maior ênfase. Para ele,

[Q]uanto menor for uma unidade democrática, maior será o potencial para a participação cidadã e menor será a necessidade para os cidadãos de delegar as decisões de governo para os seus representantes. Quanto maior for a unidade, maior será a capacidade para lidar com problemas relevantes para os cidadãos e maior será a necessidade dos cidadãos de delegar decisões para os seus representantes (Dahl, 1998: 110).

A justificação da representação pela teoria hegemónica da democracia assenta na questão da autorização. Dois tipos principais de pilares sustentam o argumento da autorização: o primeiro pilar diz respeito ao problema do consenso dos representantes e surgiu no interior da teoria democrática clássica em oposição às formas de rodízio no processo de tomada de decisão próprio das formas de democracia directa (Manin, 1997). De acordo com essa concepção, o exercício directo da gestão próprio das cidades-estado antigas ou das repúblicas italianas envolvia a falta da autorização que era substituída pela ideia do igual direito à ocupação dos cargos de decisão política. A medida em que a ideia do consenso surge no interior dos debates sobre uma teoria racional da política, o sorteio próprio das formas republicanas de decisão deixa de fazer sentido e é substituído pela ideia do consenso7, isto é, por algum mecanismo racional de autorização.

A segunda forma de justificação da questão da representação remete para Stuart Mill e para a questão da capacidade das formas de representação de expressar as distribuições das opiniões a nível da sociedade. Para Mill, a assembleia constitui uma miniatura do eleitorado e toda assembleia representativa é capaz de expressar as tendências dominantes do eleitorado. Tal abordagem levou a concepção hegemónica de democracia a centrar-se no papel dos sistemas eleitorais na representação do eleitorado (Lijphart, 1984). A concepção hegemónica da democracia, ao abordar o problema da representação, ligando-o exclusivamente ao problema das escalas, ignora que a representação envolve pelo menos três dimensões: a da autorização, a da identidade e a da prestação de contas (esta última introduzida no debate democrático muito recentemente). Se é verdade que a autorização via representação facilita o exercício da democracia em escala ampliada, tal como argumenta Dahl, é verdade também que a representação dificulta a solução das duas outras questões: a da prestação de contas e a da representação de múltiplas identidades. A representação não garante, pelo método da tomada de decisão por maioria, que identidades minoritárias irão ter a expressão adequada no parlamento. A representação, ao diluir a prestação de contas num processo de reapresentação do representante no interior de um bloco de questões, também dificulta a desagregação do processo de prestação de contas (Arato, 2000; Przeworski et al., 1999: 32). Deste modo, chegamos a um terceiro limite da teoria democrática hegemónica: a dificuldade de representar agendas e identidades específicas. Voltaremos a esse ponto na parte final desta introdução.

É possível, portanto, perceber que a teoria hegemónica da democracia, no momento em que se reabre o debate democrático com o fim da guerra fria e o aprofundamento do processo de globalização, se encontra perante um conjunto de questões não resolvidas que remetem para o debate entre democracia representativa e democracia participativa. Estas questões colocam-se com particular incidência naqueles países nos quais existe maior diversidade étnica; entre aqueles grupos que tem maior dificuldade para ter os seus direitos reconhecidos (Benhabib, 1996; Young, 2000); nos países nos quais a questão da diversidade de interesses choca com o particularismo de elites económicas (Bóron, 1994). Na secção seguinte, procuraremos recuperar aquilo que denominaremos uma “concepção não hegemónica da democracia”, tentando mostrar como os problemas apontados nessa secção podem ser articulados a partir de uma óptica diferente.

As concepções não-hegemónicas da democracia na segunda metade do século XX

O período do pós-guerra não assistiu apenas à formação e à consolidação do elitismo democrático. Ao largo da formação de uma concepção hegemónica da democracia enquanto prática restrita de legitimação de governos, surgiu também, no período do pós-guerra, um conjunto de concepções alternativas que poderíamos denominar de contra-hegemónicas. A maioria destas concepções não rompeu com o procedimentalismo kelseniano -mantiveram a resposta procedimental ao problema da democracia, vinculando procedimento com forma de vida e entendendo a democracia como forma de aperfeiçoamento da convivência humana. De acordo com essa concepção, que pode ser encontrada na obra de autores como Lefort, Castoriadis e Habermas, nos países do Norte, (Lefort, 1986; Castoriadis, 1986; Habermas, 1984; Habermas, 1995) e Lechner, Nun e Bóron nos países do Sul (Lechner, 1988; Bóron, 1994; Nun, 2000), a democracia é uma gramática de organização da sociedade e da relação entre o Estado e a sociedade:

A democracia revela, assim, a sociedade histórica, por excelência, a sociedade que por sua forma acolhe e preserva a indeterminação em contraste notável com o totalitarismo que, edificando-se sob o signo da criação do novo homem, na realidade agencia-se contra essa indeterminação (Lefort, 1986: 31).

É possível, portanto, perceber que a preocupação que está na origem das concepções não hegemónicas de democracia é a mesma que está na origem da concepção hegemónica mas que recebe uma resposta diferente. Trata-se de negar as concepções substantivas de razão e as formas homogeneizadoras de organização da sociedade, reconhecendo a pluralidade humana. No entanto, o reconhecimento da pluralidade humana dá-se não apenas a partir da suspensão da ideia de bem comum, tal como propõem Schumpeter, Downs e Bobbio, mas a partir de dois critérios distintos: a ênfase na criação de uma nova gramática social e cultural e o entendimento da inovação social articulada com a inovação institucional, isto é, com a procura de uma nova institucionalidade da democracia. Desenvolvemos seguidamente ambos os aspectos.

O problema da democracia nas concepções não hegemónicas está estreitamente ligado ao reconhecimento de que a democracia não constitui um mero acidente ou uma simples obra de engenharia institucional. A democracia constitui uma nova gramática histórica. Não se trata nesse caso, como em Barrington Moore, de pensar as determinações estruturais para a constituição dessa nova gramática. Trata-se, sim, de perceber que a democracia é uma forma sócio-histórica e que tais formas não são determinadas por quaisquer tipos de leis naturais. Explorando esse veio, Castoriadis fornece elementos para pensarmos a crítica à concepção hegemónica de democracia: “alguns pensam hoje que a democracia ou a investigação racional são auto-evidentes, projectando, assim, de maneira ingénua, a excepcional situação da sua própria sociedade para a história no seu conjunto” (Castoriadis, 1986: 274). A democracia, neste sentido, implica sempre ruptura com tradições estabelecidas e, portanto, a tentativa de instituição de novas determinações, novas normas e novas leis. É essa a indeterminação produzida pela gramática democrática, ao invés apenas da indeterminação de não saber quem será o novo ocupante de uma posição de poder8.
Pensar a democracia como ruptura positiva na trajectória de uma sociedade implica abordar os elementos culturais dessa mesma sociedade. Mais uma vez, abre-se aqui o espaço para discutir o procedimentalismo e as suas dimensões societárias. No interior das teorias contra-hegemónicas, Jürgen Habermas foi o autor que abriu o espaço para que o procedimentalismo passasse a ser pensado como prática societária e não como método de constituição de governos. Habermas ampliou o procedimentalismo, reintroduzindo a dimensão societária originalmente ressaltada por Kelsen, ao propor dois elementos no debate democrático contemporâneo.

Em primeiro lugar, uma condição de publicidade capaz de gerar uma gramática societária. Para Habermas, a esfera pública constitui um local no qual indivíduos – mulheres, negros, trabalhadores, minorias raciais – podem problematizar em público9 uma condição de desigualdade na esfera privada. As acções em público dos indivíduos permitem-lhes questionar a sua exclusão de arranjos políticos através de um princípio de deliberação societária que Habermas denomina princípio D: “apenas são válidas aquelas normas-acções que contam com o assentimento de todos os indivíduos participantes de um discurso racional” (Habermas, 1995). Ao postular um princípio de deliberação amplo, Habermas recoloca no interior da discussão democrática um procedimentalismo societário e participativo, estabelecendo uma cunha na via que conduziu de Kelsen a Schumpeter e Bobbio. De acordo com essa concepção, o procedimentalismo tem origem na pluralidade das formas de vida existentes nas sociedades contemporâneas. A política, para ser plural, tem de contar com o assentimento desses actores em processos racionais de discussão e deliberação. Portanto, o procedimentalismo democrático não pode ser, tal como supõe Bobbio, um método de autorização de governos. Ele tem de ser, tal como nos mostra Joshua Cohen, uma forma de exercício colectivo do poder político cuja base seja um processo livre de apresentação de razões entre iguais (Cohen, 1997: 412). Deste modo, a recuperação de um discurso argumentativo (Santos, 2000) associado ao facto básico do pluralismo e às diferentes experiências é parte da reconexão entre procedimentalismo e participação. Neste caso, mostram-se manifestamente insuficientes os procedimentos de agregação próprios da democracia representativa e aparecem em evidência as experiências de procedimentalismo participativo de países do Sul, tais como o orçamento participativo (OP) no Brasil ou a experiência dos Panchayats na Índia.

Há ainda um segundo elemento a ser discutido extremamente importante que é o papel de movimentos societários na institucionalização da diversidade cultural. Essa questão, que já está antecipada na crítica à teoria hegemónica feita por Lefort e Castoriadis, vai aparecer mais claramente no debate democrático a partir da teoria dos movimentos sociais. Partindo de Williams (1981), para quem a cultura constitui uma dimensão de todas as instituições – económicas, sociais e políticas – diversos autores passaram a levantar, no campo da teoria dos movimentos sociais, o facto de a política envolver uma disputa sobre um conjunto de significações culturais. Essa disputa levou a uma ampliação do campo do político no qual ocorreria uma disputa pela resignificação de práticas (Alvarez, Dagnino e Escobar, 1998). Os movimentos sociais estariam inseridos em movimentos pela ampliação do político, pela transformação de práticas dominantes, pelo aumento da cidadania e pela inserção de actores sociais excluídos no interior da política. Essa literatura sobre resignificação das práticas democráticas teve um impacto particularmente elevado na discussão democrática na América Latina, onde se associou ao problema da transformação da gramática societária. Lechner afirma, em relação aos processos de democratização em curso, que

na América Latina, a actual revalorização dos procedimentos e instituições formais da democracia não pode apoiar-se em hábitos estabelecidos e normas reconhecidas por todos. Não se trata de restaurar normas regulativas, mas de criar aquelas constitutivas da actividade política: a transição exige a elaboração de uma nova gramática (Lechner, 1988: 32).

Assim, no caso de diversos países do Sul, a redemocratização não passou pelo desafio de limites estruturais da democracia, tal como supunha a discussão sobre democracia nos anos 1960. O que a democratização fez, ao inserir novos actores na cena política, foi instaurar uma disputa pelo significado da democracia e pela constituição de uma nova gramática social. Ao gerar esse tipo de disputa, a extensão da democracia, que começou no Sul da Europa nos anos 1970 e chegou à América Latina nos anos 1980, recolocou na agenda da discussão democrática as três questões discutidas acima.

Em primeiro lugar, ela recolocou no debate democrático a questão da relação entre procedimento e participação societária. Devido à grande participação de movimentos sociais nos processos de democratização nos países do Sul, especialmente nos países da América Latina (Escobar e Alvarez, 1992; Alvarez, Dagnino e Escobar, 1998; Doimo, 1995; Jelin e Herschberg, 1996; Avritzer, 2002), o problema da constituição de uma gramática societária capaz de mudar as relações de género, raça, etnia e o privatismo na apropriação dos recursos públicos colocou na ordem do dia o problema da necessidade de uma nova gramática societária e uma nova forma de relação entre Estado e sociedade. Essa gramática implicou a introdução do experimentalismo na própria esfera do Estado, transformando-o num novíssimo movimento social (Santos, 1998: 59-74).

Em segundo lugar, o acentuar da participação societária levou também a uma redefinição sobre a adequação da solução não participativa e burocrática ao nível local, recolocando o problema da escala no interior do debate democrático. A maior parte das experiências participativas nos países recém-democratizados do Sul tem o seu êxito relacionado com a capacidade dos actores sociais de transferirem práticas e informações do nível societário para o nível administrativo. Ao mesmo tempo, as inovações institucionais que parecem bem sucedidas nos países do Sul estão relacionadas com aquilo a que Castoriadis designa por instauração de um novo eidos, isto é, uma nova determinação política baseada na criatividade dos actores sociais.

Em terceiro lugar, coloca-se o problema da relação entre representação e diversidade cultural e social. À medida que se ampliam os actores envolvidos na política, a diversidade étnica e cultural dos actores societários e os interesses envolvidos em arranjos políticos, o argumento de S. Mill acerca da representatividade perde credibilidade. Os grupos mais vulneráveis socialmente, os sectores sociais menos favorecidos e as etnias minoritárias não conseguem que os seus interesses sejam representados no sistema político com a mesma facilidade dos sectores maioritários ou economicamente mais prósperos. Ao mesmo tempo, formas de relativização da representatividade (Young, 2000) ou de articulação entre democracia representativa e democracia participativa (Santos, 1998) parecem mais promissoras na defesa de interesses e identidades subalternas. Por estas razões, a democracia participativa é considerada neste projecto de pesquisa um dos grandes cinco campos sociais e políticos onde, no inicio do novo século, se está a reinventar a emancipação social. Na próxima secção apresentaremos uma síntese dos casos estudados.

Democracia participativa no Sul no século XXI

A reinvenção de democracia participativa nos países do Sul está intimamente ligada aos processos recentes de democratização pelos quais passaram estes países. Estamos tratando, portanto, de países que, dentro da lógica hegemónica do pós-segunda guerra mundial, não estiveram no chamado campo democrático. Apesar de a segunda guerra mundial ter terminado com a derrota do fascismo, esse sistema de governo continuou predominando no Sul da Europa até os anos 1970, nomeadamente em Portugal, onde vigorou durante 48 anos. Até 1975, Moçambique viveu sob o jugo colonial e a África do Sul, até ao final da década de 1980, sob o regime do apartheid. Brasil e Colômbia são países que estiveram, ainda que muito ambiguamente, por algum tempo no campo democrático: o Brasil, alternando períodos autoritários e períodos democráticos até 1985 e a Colômbia, vivendo, desde os anos 1960, uma democracia truncada por sucessivos estados de emergência e pela guerra civil. A excepção fica por conta da Índia, o único dos países estudados que permaneceu democrático durante todo o período, apenas interrompido pela declaração do estado de emergência em 1977. Ainda assim, foi só com a chamada “terceira onda de democratização” que experiências participativas como a de Kerala se tornaram possíveis.

Todos os países incluídos neste projecto passaram por processos de transição ou de ampliação democrática a partir dos anos 1970. Portugal foi um dos países pelos quais se iniciou a chamada terceira onda de democratização ainda na década de 1970. Brasil e África do Sul foram países atingidos pela onda de democratização nos anos 1980 e 1990, o mesmo acontecendo com Moçambique, depois de ter passado pela experiência revolucionária e socialista na primeira década após a independência. A Colômbia seguiu uma via diferente: apesar de não ter tido um regime autoritário-militar, ao contrário do que aconteceu com a maioria dos outros países da América Latina, ela realizou no começo dos anos 1990 um amplo esforço de negociação social que resultou numa nova Constituição e numa lei de participação cidadã. Entre os países do Sul, a Índia pode ser considerada o país com maior continuidade democrática, ainda que alguns dos importantes processos de democracia participativa no país estejam ligados à descentralização e a tradições de participação diferenciadas ao nível local, recentemente resgatadas.

Em todos os casos, juntamente com a ampliação da democracia ou sua restauração houve também um processo de redefinição do seu significado cultural ou da gramática societária vigente. Assim, todos os casos de democracia participativa estudados se iniciam com uma tentativa de disputa pelo significado de determinadas práticas políticas, por uma tentativa de ampliação da gramática social e de incorporação de novos actores ou de novos temas na política. Para o caso de Portugal, Arriscado Nunes e Serra mostram como, durante a crise revolucionária por que passou o país após o derrube do regime autoritário, o SAAL redefiniu a ideia de direitos e condições a habitação, criando o assim chamado “direito ao lugar”. Durante o processo brasileiro de democratização e de constituição de actores comunitários surgiu de modo semelhante a ideia do “direito a ter direitos” (Sader, 1988; Dagnino, 1994) como parte da redefinição dos novos actores sociais. A mesma redefinição é detectável em muitos dos casos referenciados neste volume: no caso da marcha dos cocaleros (camponeses cultivadores e recolectores de coca) na Colômbia, Ramirez mostra que a luta contra a fumigação das plantações de coca expressa uma tentativa dos camponeses na região amazónica de demandar, num contexto marcado pela violência externa, o reconhecimento de uma identidade alternativa à construída pelo Estado a seu respeito. Considerados pelo Estado como narcotraficantes e simpatizantes da guerrilha, os camponeses reivindicam ser reconhecidos como actores sociais independentes e cidadãos do país e de Putomayo, identificando a sua condição de cidadão com uma política voluntária de erradicação da coca a ser negociada com o governo da Colômbia. Clemência Ramirez mostra como esse movimento implicou associar a cidadania a uma definição de pertença. Ao exigir esse reconhecimento “busca-se conseguir uma representação frente ao Estado como grupo diferenciado com voz para decidir conjuntamente com ele políticas sobre o bem-estar dos habitantes do Putumayo”. Ainda na Colômbia, Uribe mostra como San José de Apartadó, ao criar o estatuto de “comunidade de paz”, reivindica a legitimidade de uma auto-representação alternativa à que lhes é conferida tanto pelo Estado como pelos actores violentos (guerrilha e paramilitares). Por sua vez, Osório mostra as diferentes estratégias de negociação das mulheres moçambicanas com vista à sua inserção no jogo político dominado pelos homens. Para a autora, no contexto de um Estado pós-colonial que tenta definir externamente uma identidade da mulher “moderna”, surge a construção social de uma identidade feminina conducente a “uma apropriação diferenciada das finalidades da acção política”, mesmo quando homens e mulheres fazem parte das mesmas organizações políticas. A mesma concepção de identidade pode ser vista nos casos da Índia e da África do Sul. D. L. Sheth mostra como a hegemonia do modelo de democracia liberal na Índia não impediu a emergência de movimentos sociais animados de ideais participativos e princípios de solidariedade social interpretados à luz de uma concepção gandhiana de auto-governo (swaraj). Buhlungu mostra a pujança das novas formas de solidariedade e identidade que surgiram no final da década de 1980 e início de 1990, a partir da luta anti-apartheid na África do Sul, protagonizadas por dois fortes actores colectivos: o movimento cívico e o movimento sindical.

Assim, é possível mostrar que, apesar das muitas diferenças entre os vários processos políticos analisados, há algo que os une, um traço comum que remete para a teoria contra-hegemónica da democracia: os actores que implantaram as experiências de democracia participativa colocaram em questão uma identidade que lhes fora atribuída externamente por um Estado colonial ou por um Estado autoritário e discriminatório. Reivindicar direitos de moradia (Portugal), direitos a bens públicos distribuídos localmente (Brasil), direitos de participação e de reivindicação do reconhecimento da diferença (Colômbia, Índia, África do Sul e Moçambique) implica questionar uma gramática societária e estatal de exclusão e propor, em alternativa, uma outra mais inclusiva.

O que está em causa nestes processos é a constituição de um ideal participativo e inclusivo como parte dos projectos de libertação do colonialismo – Índia, África do Sul e Moçambique – ou de democratização – Portugal, Brasil e Colômbia. A Índia teve um movimento pela independência muito influenciado pela filosofia e prática de Gandhi, que trazia no seu bojo a afirmação de um projecto autónomo de país. Como afirma Sheth, tal movimento de libertação, nas suas vertentes gandhiana, mas também socialista e comunista, implicou um amplo projecto de incorporação das massas indianas, movimento esse que confluiu numa Constituição que foi entendida não apenas como um documento de organização política mas também como “uma agenda para a transformação social e política de uma Índia independente”. Essa agenda incluía fortemente a ideia da participação e da inclusão política das castas tribais pobres e marginalizadas. Buhlungu mostra-nos uma agenda semelhante no caso da África do Sul, já que a luta contra o apartheid foi inspirada por um ideal participativo que reivindicava simultaneamente a igualdade da cidadania e o reconhecimento da diferença. Para Buhlungu, cada movimento emancipatório “inspira uma visão de liberdade ou de liberação que contém, por sua vez, a promessa de uma forma de democracia participativa e inclusiva”. No caso de Moçambique a institucionalização da democracia liberal ocorreu nos escombros de uma experiência revolucionária dominada pelos ideais de participação, ainda que, na prática, muitas vezes truncados pelo autoritarismo revolucionário e pela dominação sexista.

Assim, um traço comum aos movimentos pós-coloniais é a importância da democracia participativa. Ela é importante, porque como nos diz Castoriadis, ela cria uma normatividade pós-colonial imaginária na qual a democracia enquanto um projecto de inclusão social e de inovação cultural se coloca como tentativa de instituição de uma nova soberania democrática.

Por sua vez, os processos recentes de democratização também incorporam esse elemento de instituição da participação. No caso do Brasil, durante o processo de democratização movimentos comunitários reivindicaram em diversas regiões do país – em particular, na cidade de Porto Alegre – o direito de participar nas decisões a nível local:

Participar significa influir directamente nas decisões e controlar as mesmas. […] Se estamos numa nova fase no país, é possível e é preciso que o movimento comunitário avance e influa directamente, apresentando propostas, discutidas e definidas pelo movimento sobre o orçamento [público] (UAMPA, 1986; Silva, 2001: 122).

Essa pulsão participativa veio a frutificar, entre outras, nas experiências do orçamento participativo analisadas por Santos e por Avritzer. No caso de Portugal, a crise revolucionária criou uma situação política sui generis que Santos (1990), tomando como referência a situação na Rússia no período imediatamente anterior à Revolução de Outubro, caracterizou como “dualidade de impotências” uma situação de paralisia do Estado provocada por um vazio, tanto do poder burguês, como do poder operário. Foi nesse período que floresceram as experiências de participação popular, independentes ou mesmo hostis em relação ao Estado nalguns casos e negociando complementaridades com o Estado noutros casos, como foi o caso do SAAL analisado por Arriscado e Serra. No caso da Colômbia, a negociação que conduziu à Constituição de 1991 animou um amplo processo de participação que conduziu ao maior protagonismo e visibilidade política dos actores sociais. Entre eles deve ser salientado o movimento indígena que há muito vinha lutando pelo seu reconhecimento. Uprimny e Villegas analisam o modo como esse reconhecimento teve lugar ao nível do Tribunal Constitucional e no terceiro volume desta colecção o tema indígena será tratado com mais detalhe.

As vulnerabilidades e ambiguidades da participação

Na secção anterior procuramos mostrar que os processos de libertação e os processos de democratização parecem partilhar um elemento comum: a percepção da possibilidade da inovação entendida como participação ampliada de actores sociais de diversos tipos em processo de tomada de decisão. Em geral, estes processos implicam a inclusão de temáticas até então ignoradas pelo sistema político, a redefinição de identidades e pertenças e o aumento da participação, nomeadamente ao nível local.

Estes processos tendem a ser objecto de intensa disputa política. Como vimos atrás, as sociedades capitalistas, sobretudo nos países centrais, consolidaram uma concepção hegemónica de democracia, a concepção da democracia liberal, com a qual procuraram estabilizar a tensão controlada entre democracia e capitalismo. Essa estabilização ocorreu por duas vias: pela prioridade conferida à acumulação de capital em relação à redistribuição social10 ; e pela limitação da participação cidadã, tanto individual, como colectiva, com objectivo de não “sobrecarregar” demasiado o regime democrático com demandas sociais que pudessem colocar em perigo a prioridade da acumulação sobre a redistribuição. O receio da “sobrecarga democrática” presidiu as transformações que, a partir da década de 1980, ocorreram na teoria e na prática democráticas hegemónicas nos países centrais, depois exportadas para a semiperiferia e periferia do sistema mundial. A ideia da “sobrecarga democrática” tinha sido formulada em 1975 num relatório da Comissão Trilateral preparado por Crozier, Huntington e Watanuki (1975). Segundo estes autores, a sobrecarga era causada pela inclusão política de grupos sociais anteriormente excluídos e pelas demandas “excessivas” que faziam à democracia. Desse modo, podemos perceber que no momento em que, pela via da descolonização ou da democratização, o problema da extensão da democracia para os países do Sul se colocou pela primeira vez, a concepção hegemónica da democracia teorizou a questão da nova gramática de inclusão social como excesso de demandas. À luz disso, é fácil concluir que os processos de intensificação democrática que temos estado a analisar tendem a ser fortemente contestados pelas elites excludentes ou “elites metropolitanas”, como lhes chama Sheth. Por combaterem interesses e concepções hegemónicas, estes processos são muitas vezes combatidos frontalmente ou descaracterizados por via da cooptação ou da integração. Nisto reside a vulnerabilidade e ambiguidade da participação, presentes em vários dos casos analisados neste volume.

A fragilidade institucionalizante da participação está bem patente no caso português, uma vez que o movimento participativo em torno da moradia foi posto em causa logo que terminou o curto período de crise revolucionária. Segundo Arriscado Nunes e Serra, “ao longo dos anos, a memória oficial da Revolução procurou apagar activamente todos os episódios que, de alguma forma, apontassem para a possibilidade de um modo alternativo de organização da sociedade ou de envolvimento dos cidadãos no processo político”.

No caso da África do Sul, Buhlungu mostra como, à medida que se institucionalizou o regime democrático pós-apartheid, o Estado, o sistema político e o próprio ANC, que tinha dinamizado todo o movimento social na década de 1980, passaram a desencorajar e mesmo a desmobilizar a participação popular, que tão importante tinha sido no derrube do apartheid, sob o pretexto que a democracia representativa agora instaurada garantia a representação adequada dos diferentes interesses sociais em presença.

A vulnerabilidade da participação à descaracterização, quer pela cooptação por grupos sociais super-incluídos, quer pela integração em contextos institucionais que lhe retiram o seu potencial democrático e de transformação das relações de poder, está bem ilustrada em vários casos analisados. Em Portugal, as formas de participação cidadã nos processos de planeamento urbano ou territorial analisadas por Isabel Guerra revelam em que medida a participação se pode transformar num processo de controle social organizado de cima para baixo (top-down), onde interesses e actores hegemónicos encontram uma nova forma de prevalecer sobre interesses e actores subordinados com menos capital político ou organizativo. Para obviar esse perigo, Guerra propõe a integração dessas formas de participação em processos mais amplos de negociação social onde os diferentes interesses estejam adequadamente representados, uma proposta a que chama “de uma democracia de gestão para uma democracia de projecto”.

Os casos colombianos analisados ilustram igualmente a vulnerabilidade e ambiguidade da participação. Uprimny e Villegas mostram como a Constituição de 1991 incorporou as forças excluídas e oprimidas tais como representantes de grupos guerrilheiros desmobilizados, indígenas e minorias religiosas, relativizando assim a influência dos dois partidos que, até então, tinham dominado a cena política colombiana, partidos liberal e conservador:

Nesse marco, o diagnóstico dos delegados [à assembleia constituinte] era o seguinte: a exclusão, a falta de participação e a debilidade na protecção dos direitos humanos seriam os factores básicos da crise colombiana. Tal diagnóstico explicaria algumas das orientações ideológicas da Carta de 1991: a ampliação dos mecanismos de participação, a imposição ao Estado de deveres relativos à justiça social e à igualdade, a incorporação de uma gama de direitos e de mecanismos para a sua protecção.

No entanto, os autores mostram como uma contradição permeou, desde o início, a tentativa de criação de uma nova ordem institucional, na medida em que actores sociais, tanto a nível do governo, quanto a nível da oposição, se posicionaram numa direcção contrária à pacificação do espaço político e à ampliação da participação e dos direitos. O estudo de Uprimny e Villegas incide especificamente no Tribunal Constitucional criado em 1992. Para os autores, o caso colombiano do Tribunal Constitucional mostra como numa situação de desmobilização cidadã a demanda por igualdade e justiça se pode deslocar do campo político para o campo jurídico:

O desencanto dos colombianos pela política levou a que certos sectores exigissem do poder judicial respostas a problemas que em princípio deveriam ser debatidos e resolvidos, graças à mobilização cidadã, nas esferas políticas. O fenómeno não é exclusivo do nosso país (Santos, 1995), mas no caso colombiano a debilidade dos mecanismos de representação política é mais profunda, o que possibilitou um maior protagonismo do Tribunal.

Temos, assim, no caso colombiano uma dupla dimensão: por um lado, como os próprios autores apontam, a Colômbia tem uma tradição débil de movimentos sociais; por outro lado, muitos dos actores que dominaram a Assembleia Constituinte se enfraqueceram nos anos posteriores. Assim, o caso Colombiano aparece como um caso de vulnerabilidade da participação no qual um cenário de protagonismo judicial mostra o impacto ambíguo da ação judicial sobre os movimentos sociais.

A vulnerabilidade da participação em um cenário de conflito entre gramáticas sociais é mostrada por Maria Teresa Uribe, em um texto dramático no qual ela mostra a contradição entre participação, pacificação do espaço político e guerra civil: trata-se do caso da comunidade de paz de San José de Apartadó. Essa comunidade “decidiu adoptar uma estratégia comum de resistência civil e desarmada contra a guerra e pelo direito de permanecer em sua terra, comprometendo-se, mediante um pacto público, a não se envolver com actores armados, estando aí incluído o próprio Estado”. Localizada na zona bananeira colombiana, um santuário da guerrilha no país, San José Apartadó, possui uma posição geográfica estratégica central no conflito colombiano. O pacto chamado Comunidade de Paz foi anunciado em Maio de 1997 com a ajuda da Diocese local, da Comissão Intercongregacional de Justiça e Paz e diversas ONGs. O forte apoio internacional à declaração da Comunidade de Paz obrigou os paramilitares a respeitarem a neutralidade11. No entanto, ao fim de dois anos, o frágil equilíbrio de forças desfaz-se: a uma primeira incursão dos paramilitares, em Abril de 1999, seguem-se diversas incursões das forças guerrilheiras. Até o ano de 2000, 83 pessoas já haviam sido assassinadas em San José Apartadó. Ou seja, é possível perceber no caso Colombiano a dependência entre o aprofundamento da democracia e a necessidade de constituição de uma nova gramática social assente na pacificação, o que implica negociações políticas para além da escala local.

Ainda que com menor grau de confirmação, esta mesma complexidade da participação pode ser detectada em Moçambique no estudo de caso analisado por Osório. Assim, segundo a autora, a ocupação do espaço político por parte das mulheres tanto pode contribuir para contestar o domínio masculino, como para o consolidar. O caso de Moçambique demonstra que, nas situações nas quais a democracia não implica uma renegociação de uma gramática mais pluralista, expressa pelo aumento da participação feminina, a própria gramática societária entra em conflito com os mecanismos de funcionamento do modelo político. A autora distingue três estratégias adoptadas pelas mulheres em relação à participação política: adaptação às hierarquias existentes e, portanto, à superioridade masculina; adopção do modelo masculino como modelo universal, usando a arma da igualdade formal para fazer avançar o poder das mulheres; reivindicação de um outro modelo alternativo com capacidade para subverter as dicotomias em que assenta o poder masculino. A análise de Osório conduz a uma reflexão sobre as vulnerabilidades da democracia. Para ela,

o exercício da democracia, no contexto dos sistemas globalmente legitimados, deixa de satisfazer a demanda de novos grupos, como é o caso das mulheres. […] [Esse caso implica] a necessidade de acção mais plural e transversal aos diferentes espaços de produção do político.

Assim, a autora mostra que, mesmo em situações nas quais existe o aumento da participação, que esse aumento, para se tornar emancipatório, necessita de se adequar à tentativa de recriação das formas do político.

A complexa questão da ambiguidade da participação é exemplarmente tratada por Paoli para o caso do Brasil, país no qual existem elementos para pensarmos tanto experiências positivas quanto negativas de participação. Paoli salienta a continuidade das práticas de participação entre o processo de democratização e a actualidade. Segundo ela,

as práticas de deliberação participativa no Brasil estiveram, desde o seu início, ligadas à visibilidade política dos novos movimentos sociais e à redefinição de práticas do movimento operário nas décadas de 70 e 80. Elas foram entendidas através de uma renovada teoria do conflito social que apontava para formas de participação popular e lutas plurais demandantes de representação autónoma no processo de distribuição de bens públicos e formulação de políticas públicas.

Contudo, o caso por ela analisado – o activismo social dos empresários contra a exclusão social – mostra como o ideal da participação da sociedade civil pode ser cooptada por sectores hegemónicos para cavalgar o desmonte das políticas publicas, sem o criticar, e, pelo contrário, aproveitando-o para realizar uma operação de “marketing social”. Como ela afirma,

é possível perceber, de um lado, o possível potencial inovador que a mobilização responsável empresarial dirige ao transbordamento da pobreza e das oportunidades de vida da população carente. De outro lado, é visível que esta mobilização silencia a respeito das políticas que aprofundam a exclusão social e desorientam politicamente a própria sociedade brasileira, além de ocupar vantajosamente, em termos de seus interesses particulares, o próprio espaço que abre como acção civil para um público.

Paoli mostra especificamente, no caso da Fundações de Filantropia Empresarial no Brasil, a tentativa de apropriação de um discurso em torno da noção de público. Essas fundações, ao mesmo tempo em que ressaltam os efeitos sociais das suas políticas, tendem a reduzir a ideia de público a duas categorias: a dos consumidores e a dos empregados da própria empresa. A autora mostra, assim, os perigos da apropriação do discurso da democracia participativa por propostas que não implicam muito mais que a sua redução às categorias da mercantilização12.
Podemos, portanto, sistematizar algumas das características dos casos nos quais a participação não chega a vigorar ao final de um processo de descolonização ou democratização. Podemos pensar em pelo menos quatro casos diferentes: em primeiro lugar, o caso português no qual as formas de participação são desqualificadas no final de um processo de disputa pela hegemonia da forma democrática, no qual as forças conservadoras conseguem impor o seu modelo. Podemos pensar a Colômbia como um segundo caso, no qual as formas de participação não se deslegitimam mas, tampouco conseguem impor-se como modelo alternativo devido a reacção dos sectores conservadores. O caso de Moçambique parece ser diferente. Por um lado, é verdade que as práticas de participação em Moçambique tampouco se deslegitimam. O que o caso Moçambicano coloca é a necessidade de uma pluralização da própria gramática política para que a pluralidade da sociedade possa ser assimilada pela democracia. E temos finalmente o caso do Brasil, no qual as formas de participação podem fazer parte de um processo de cooptação, como parece ser o caso da noção de público utilizada por associações de filantropia empresarial, mas representam, fundamentalmente, uma inovação capaz de gerar modelos contra-hegemónicos de democracia tal como iremos mostrar na próxima secção.

As potencialidades da participação

À luz dos casos estudados, o Brasil e a Índia são os casos nos quais as potencialidades da democracia participativa mais claramente se manifestam. Leonardo Avritzer mostra, no seu texto sobre o orçamento participativo (OP), como a Assembleia Constituinte no Brasil aumentou a influência de diversos actores sociais nas instituições políticas através de novos arranjos participativos.

O artigo 14 da Constituição de 1988 garantiu a iniciativa popular como iniciadora de processos legislativos. O artigo 29 sobre a organização das cidades requereu a participação dos representantes de associações populares no processo de organização das cidades. Outros artigos requereram a participação das associações civis na implementação das políticas de saúde e assistência social.

Sendo assim, a Constituição foi capaz de incorporar novos elementos culturais, surgidos ao nível da sociedade, na institucionalidade emergente abrindo espaço para prática da democracia participativa.

Santos e Avritzer mostram como, entre as diversas formas de participação que emergiram no Brasil pós-autoritário, o OP adquiriu proeminência particular. Os autores mostram como, no caso brasileiro, a motivação pela participação é parte de uma herança comum do processo de democratização que levou actores sociais democráticos, especialmente, aqueles oriundos do movimento comunitário a disputar o significado do termo participação. No caso da cidade de Porto Alegre, essa disputa articula-se com a abertura de espaços reais de participação pela sociedade política, em particular pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Com isso, surgem formas efectivas de combinação entre elementos da democracia participativa e representativa, através da intenção das administrações do PT de articular o mandato representativo com formas efectivas de deliberação a nível local.

O OP surge dessa intenção que, de acordo com Santos, se manifesta em três das suas características principais: (1) participação aberta a todos os cidadãos sem nenhum status especial atribuído a qualquer organização, inclusive as comunitárias; (2) combinação da democracia directa e representativa, cuja dinâmica institucional atribui aos próprios participantes a definição das regras internas e (3) alocação dos recursos para investimentos baseado na combinação de critérios gerais e técnicos, ou seja, compatibilização das decisões e regras estabelecidas pelos participantes com as exigências técnicas e legais da acção governamental, respeitando também os limites financeiros.13
Segundo Avritzer, esses princípios gerais se traduzem em três formas de institucionalidade participativa. Em primeiro lugar, assembleias regionais nas quais a participação é individual, aberta a todos os membros da comunidade e cujas regras de deliberação e de decisão são definidas pelos próprios participantes. Em segundo lugar, um princípio distributivo capaz de reverter desigualdades pré-existentes em relação à distribuição de bens públicos. No caso do OP em Porto Alegre e também em Belo Horizonte, existem princípios distributivos que antecedem o próprio processo de deliberação, as chamadas tabelas de carências. Em terceiro lugar, há um mecanismo de compatibilização entre o processo de participação e de deliberação e o poder público, processo esse que envolve, no caso de Porto Alegre, o funcionamento de um conselho capaz de deliberar sobre o orçamento e de negociar prioridades com a prefeitura local.

Temos, portanto, no caso brasileiro, uma primeira forma bem sucedida de combinação entre elementos da democracia representativa e da democracia participativa. Essa combinação ocorre a três níveis: no nível local, cidadãos participam de um processo de negociação e deliberação sobre prioridades na distribuição de bens públicos. Esse processo expressa um elemento já ressaltado no nosso texto que é a necessidade da democracia se articular com uma nova gramática social. No caso do OP, essa gramática tem dois elementos: distribuição justa de bens públicos e negociação democrática do acesso a esses bens entre os próprios actores sociais. As assembleias regionais, as listas de acesso prévio a bens públicos e o conselho do OP, todos eles expressam essa dimensão que denominamos acima procedimentalismo participativo, um processo de participação ampliada envolvendo um amplo debate público sobre as regras da participação, da deliberação e da distribuição.

O OP mostra alguns dos potenciais de ampliação da democracia participativa. No caso de Porto Alegre, a participação da população cresceu praticamente todos os anos. No caso de Belo Horizonte, apesar de um pouco mais de variação, ela também é crescente. É importante também ressaltar que o OP tem ampliado significativamente a sua presença no Brasil. Entre 1997 e 2000, existiram 140 gestões municipais que adoptaram o OP, a grande maioria (127) em cidades de até 500 mil habitantes. Na metade dos casos (71), essas administrações eram ligadas ao PT enquanto na outra metade não o eram (Grazia, 2001). A extensão do OP para todas as regiões do Brasil, além de para outras propostas políticas, mostra o potencial de extensão de experiências bem sucedidas de democracia participativa.

No caso da Índia, são igualmente visíveis as potencialidades da democracia participativa. Sheth mostra, como no caso da Índia, as acções políticas e participatórias que se rearticulam a partir do fim dos anos 1960

existiam como fragmentos de movimentos políticos e sociais que tiveram as suas origens no movimento pela libertação. […] Eles actuaram em espaços pequenos e estagnados na periferia da política eleitoral e partidária. […] Mas, três décadas após a independência novos espaços políticos e sociais se abriram para eles.

No entanto, Sheth salienta igualmente que estas formas de democracia participativa, por não se compaginarem com o modelo da democracia liberal, são consideradas, pelas elites metropolitanas e pelas classes médias, suspeitas e portadoras de valores negativos anti-desenvolvimentistas e anti-nacionais. Daí que a articulação das iniciativas de democracia participativa com a democracia representativa só ocorre em contextos políticos específicos, como por exemplo, em Kerala, o caso estudado por Heller e Isaac.

O desafio democrático na Índia é muito complexo porque, para além das diferenças de classe, sexo, etnia, religião e regionais, há ainda que contar com as diferenças de casta. Trata-se, pois, de um desafio que se situa no campo da assim chamada democratização da democracia. O sistema de castas reproduziu-se no interior do sistema político indiano inserindo, no interior desse último, relações hierárquicas, assim como profundas desigualdades materiais (Heller, 2000). E Sheth mostra como o próprio projecto de construir uma democracia partilhada por todas as castas e todos os grupos sociais, estabelecendo uma referência simbólica comum para o conjunto da população do país, foi aos poucos sendo subordinado a uma agenda particularista da sociedade política.
Duas formas principais de democratização do sistema político indiano podem ser apontadas actualmente. A primeira é uma forma de democracia local baseada na ruptura ao nível da própria sociedade com uma gramática de exclusão. Essa é a forma que a democratização assumiu na província de Kerala. Ali, diferentemente de outras partes da Índia, a infra-estrutura associativa não reproduz o padrão dominante de organizações religiosas e de castas que reproduzem uma cultura da desigualdade.

Kerala tem os mais altos níveis de sindicalização no país e, diferentemente do padrão nacional, os sindicatos atingem também os trabalhadores do sector informal. […] Kerala possui também uma vasta gama de organizações femininas, estudantis e de juventude, patrocinadas por todos os partidos. […] Apenas as associações de massa ligadas ao CPM – filiado ao Partido Comunista da Índia – têm mais de 4,7 milhões de membros (Heller, 2000).

Temos aqui, portanto, um primeiro caso de ruptura com formas restritas de democracia a nível local. Essa ruptura que, no caso de Kerala, se dá em primeiro lugar ao nível da sociedade civil, através da constituição de uma gramática associativa, é ampliada para a sociedade política através do sistema dos Panchayats. Esse sistema foi introduzido pela Frente Democrática de Esquerda em 1996 através do lançamento da chamada Campanha Popular pelo Planeamento Descentralizado. Essa campanha atingiu um nível enorme de transferência de capacidade deliberativa para os panchayats. “Todos os 1214 governos locais em Kerala – os municipais e os três níveis rurais […] – passaram a assumir novas funções e poderes de decisão e adquiriram poderes de deliberação em relação a 40% do orçamento do Estado para o desenvolvimento” (Heller e Isaac, 2002) A transferência da deliberação para o nível local implicou um processo de mudança qualitativa da participação e da deliberação, passando a envolver convenções nas áreas rurais (grama sabha) nas quais participaram mais de 2 milhões de pessoas e seminários de colecta de informação e planeamento, dos quais participaram mais de 300 mil delegados, além de forças tarefas de voluntários nas quais participaram mais de 100 mil pessoas (Heller e Isaac, 2002). Podemos, portanto, perceber um enorme processo de participação desencadeado pela transferência do processo de deliberação sobre o orçamento para o nível local.

Há uma segunda forma de aprofundamento da democracia indiana que nos é mostrada por Sheth e está também relacionada a mobilização da população ao nível local. São movimentos a nível local para forçar os governos a agir de forma mais honesta e eficiente. A política desses movimentos centra-se em audiências públicas e tribunais populares que tem como objectivo criar constrangimentos políticos e sociais para os governos locais. Sheth descreve um dos momentos mais significativos desses movimentos quando, em Dezembro de 1994-5, diversas audiências públicas – Jan Sunvai – ocorrem em diversos Estados e são acompanhadas por jornalistas. Essas audiências levam a uma manifestação local de mais de 40 dias – dharna – que leva o governo a publicizar suas contas através do Panchayat Raj.

Tanto na Índia como no Brasil, as experiências mais significativas de mudança na forma da democracia têm sua origem em movimentos a nível da sociedade que questionam as práticas sociais de exclusão através de acções que geram novas normas e novas formas de controle do governo pelos cidadãos.

É possível apontar algumas semelhanças e algumas diferenças entre as duas experiências. Em primeiro lugar, as duas experiências surgem de um processo de renovação ao nível da sociedade, no caso de Porto Alegre, como aponta Avritzer, de uma proposta de participação no orçamento formulada nos anos 1980 pela União das Associações de Moradores de Porto Alegre (UAMPA) e no caso de Kerala, como apontam Heller e Isaac, através de experiências de participação ao nível local conduzidas por organizações da sociedade civil, em particular pela Kerala Sastra Sahitya Parishad (Heller e Isaac, 2002). Em segundo lugar, nos dois casos foi preciso que um movimento político partidário tomasse a decisão política de abrir mão de prerrogativas de decisão em favor das formas de participação. Em Porto Alegre, o PT desempenhou esse papel e, em Kerala, o Partido Comunista da Índia. Em terceiro lugar, a proposta de participação envolveu um processo de elaboração de regras complexas de participação em ambos os casos, como mostra Santos para o caso de Porto Alegre e Heller e Isaac para o caso de Kerala. É importante ressaltar que essas regras – que, no caso de Porto Alegre, pré-determinam o carácter distributivo do OP e estabelecem incentivos à participação da população de baixa renda14 e, no caso de Kerala, tornam públicos os critérios de beneficiamento e priorização15 -, serão fundamentais para o sucesso da forma de participação. Os dois casos que podemos indicar como bem sucedidos apresentam duas características extremamente importantes: surgem de mudanças em práticas societárias introduzidas pelos próprios actores sociais; em segundo lugar, resgatam tradições democráticas locais a princípio ignoradas pelas formas de democracia representativa hegemónicas nesses países. Porto Alegre, no caso do Brasil, e Kerala, no caso da Índia, expressam uma tentativa de extensão da democracia baseada em potenciais da própria cultura local.

Podemos também apontar alguns contrastes importantes entre os dois casos. Em primeiro lugar, apesar da importância do PT na experiência do OP, existe um controle reduzido do processo por parte do PT com uma baixa filiação partidária dos participantes do OP. O controle do Partido Comunista da Índia sobre o processo parece ser maior, o que o torna dependente de uma colisão política instável num Estado com uma forte minoria islâmica. Em segundo lugar, existe uma diferença importante na forma de transferência de prerrogativas sobre o orçamento: o OP em Porto alegre e em Belo Horizonte descentraliza e democratiza apenas o processo de deliberação, mantendo nas mãos da prefeitura o processo de implementação administrativa das decisões. Nesse caso, ele incentiva o controle da administração pública pelo Conselho do OP em Porto Alegre e pelo COMFORÇAS em Belo Horizonte (Avritzer, 2002), criando, assim, um mecanismo de controle da administração relativamente invulnerável a processos de corrupção dado ao excesso de mecanismos públicos e formas de controle. No caso da Índia, os recursos são transferidos para os próprios comités, dando margem a acusações de corrupção, tal como apontam Heller e Isaac. Por fim, tudo indica no caso do Brasil que o OP fortalece eleitoralmente aqueles que o praticam, a ponto de outros partidos quererem implantá-lo, ao passo que a continuidade da experiência indiana foi colocada em questão pela derrota eleitoral da Frente de Esquerda.

Assim, os casos aqui referidos colocam para a prática democrática contemporânea não só a inconclusividade do debate entre representação e participação da forma como sustentam as teorias hegemónicas da democracia, mas a necessidade de uma nova formulação em relação à combinação entre essas diferentes formas de democracia.

Conclusão

Os estudos incluídos neste volume levantam mais questões do que dão respostas. Nisso permanecem fieis ao objectivo central do projecto A Reinvenção da Emancipação Social, no âmbito do qual foram realizados. Este projecto visou desenhar novos horizontes de emancipação social, ou melhor, de emancipações sociais a partir de práticas que ocorrem em contextos específicos para dar resposta a problemas concretos. Portanto, não é possível retirar delas soluções universais, válidas em qualquer contexto. No máximo, tais práticas são animadas de aspirações emancipatórias amplas às quais procuram dar realização parcial e limitada.

Entre realização e a aspiração está a imaginação do possível para além do real existente. Essa imaginação é composta das perguntas que constituem o desenho dos horizontes emancipatórios. Não se trata, pois, de quaisquer perguntas, mas sim de perguntas que resultam do excesso das aspirações em relação a realizações de práticas concretas. No caso específico do tema do projecto analisado neste volume, a democracia participativa, os horizontes são as perguntas que interpelam a possibilidade de ampliar o cânone democrático. Através dessa possível ampliação, o cânone hegemónico da democracia liberal é contestado na sua pretensão de universalidade e exclusividade, abrindo-se, assim, espaço para credibilizar concepções e práticas democráticas contra-hegemónicas. Mencionamos a seguir as questões e as respostas que é possível dar a algumas delas.

1. A perda da demodiversidade. A comparação entre os estudos e debates sobre a democracia nos anos 1960 e na última década leva-nos facilmente à conclusão de que a nível global se perdeu demodiversidade nos últimos trinta anos. Por demodiversidade entendemos a coexistência pacífica ou conflitual de diferentes modelos e práticas democráticas. Nos anos 1960, se, por um lado, o modelo hegemónico de democracia, a democracia liberal, parecia destinado a ficar confinado, enquanto prática democrática, a um pequeno recanto do mundo, por outro lado, fora da Europa ocidental e da América do Norte, existiam outras práticas políticas que reivindicavam o estatuto democrático e faziam-no à luz de critérios autónomos e distintos dos que subjaziam à democracia liberal. Entretanto, à medida que essas práticas políticas alternativas foram perdendo força e credibilidade, foi-se impondo o modelo de democracia liberal como modelo único e universal e a sua consagração foi consumada pelo Bando Mundial e o Fundo Monetário Internacional ao transformá-lo em condicionalidade política para a concessão de empréstimos e ajuda financeira.

A conversão do modelo liberal em modelo único e universal implica, a nosso ver, uma perda de demodiversidade. A negatividade dessa perda reside em dois factores. O primeiro diz respeito à justificação da democracia. Se, como cremos, a democracia tem um valor intrínseco e não uma mera utilidade instrumental, esse valor não pode assumir-se como universal sem mais. Está inscrito numa constelação cultural específica, a da modernidade ocidental, e essa constelação, por coexistir com outras num mundo que agora se reconhece como multicultural, não pode, simplesmente reivindicar a universalidade dos seus valores. Sabemos hoje que, se essa reivindicação se recusar a dar as razões que a sustentam e a dialogar com outras que eventualmente a contestam, só se imporá por força de circunstâncias que lhe são estranhas e que, como tal, a transformam numa reivindicação imperial. E esta tentação imperial está tão mais presente quanto é observável a força avassaladora da globalização neoliberal e das instituições que, em seu nome, impõem globalmente a adopção da democracia liberal. Não faz sentido postular a universalidade dos valores que sustentam a democracia na base de que não há nada noutras culturas que se lhes oponha, como faz Amartya Sen (1999). Uma tal convergência não pode ser postulada como ponto de partida. Tem de ser, quando muito, o ponto de chegada de um diálogo intercultural em que as outras culturas possam apresentar não só aquilo a que não se opõem, como, sobretudo, aquilo que propõem autonomamente.

Somos adeptos de tal diálogo cultural e acreditamos que ele é enriquecedor para todos os que nele participam. As convergências, que resultam quase sempre em formas de hibridação cultural, têm de ser conseguidas na prática da argumentação e na argumentação da prática. No que respeita às práticas analisadas neste volume, vemos aflorar essa hibridação, sobretudo nos estudos de caso da Índia, mas ela está presente de um modo ou de outro nos estudos de caso de Moçambique, Brasil, África do Sul e Colômbia.

A perda da demodiversidade é negativa por um segundo factor que, embora autónomo em relação ao primeiro, está com ele relacionado. Trata-se da distinção entre democracia como ideal e democracia como prática. Esta distinção é central ao modelo hegemónico de democracia e foi introduzida no debate para justificar a baixa intensidade democrática dos regimes políticos instituídos quando comparados com os ideais democráticos revolucionários do final do século XVIII e de meados do século XIX. A imposição universal do modelo liberal leva ao extremo esta distinção e nela a democracia realmente existente está frequentemente tão distinta do ideal democrático que não parece ser mais que uma caricatura dele. Aliás, essa distância não é, por vezes, menor nos países centrais do que nos países periféricos, apesar das aparências em contrário. É essa distância que leva Wallerstein a responder à questão sobre o que pensar a respeito da democracia como realização com a resposta que Gandhi deu quando lhe perguntaram o que pensava da civilização ocidental: “seria uma boa ideia” (2001: 10).

Neste volume ficam descritas e analisadas práticas e aspirações democráticas que, nos diferentes países integrados neste projecto, procuram levar a sério a aspiração democrática, recusando aceitar como democráticas práticas que são a caricatura da democracia e, sobretudo, recusando aceitar como fatalidade a baixa intensidade democrática a que o modelo hegemónico sujeitou a participação dos cidadãos na vida política. De maneira muito distinta, essas práticas buscam intensificar e aprofundar a democracia, quer reivindicando a legitimidade da democracia participativa, quer pressionando as instituições da democracia representativa no sentido de as tornar mais inclusivas, quer ainda buscando formas de complementaridade mais densas entre a democracia participativa e a democracia representativa.

2. O local e o global. Salientamos no texto que o modelo hegemónico de democracia tem sido hostil à participação activa dos cidadãos na vida política e, quando a tem aceitado, tem-na confinado ao nível local. Trata-se da conhecida questão das escalas. Mais adiante nesta conclusão voltaremos ao assunto, mostrando a resposta contra-hegemónica a esta questão, com base na qual é possível construir complementaridades densas entre democracia participativa e democracia representativa e, portanto, entre escalas locais e escalas nacionais.

Neste momento, queremo-nos referir às possíveis articulações transnacionais entre diferentes experiências locais de democracia participativa ou entre essas experiências locais e movimentos ou organizações transnacionais interessados na promoção da democracia participativa. A globalização contra-hegemónica passa, neste domínio, por essas articulações. São elas que permitem criar o local contra-hegemónico, o local que é o outro lado do global contra-hegemónico. Essas articulações credibilizam e fortalecem as práticas locais pelo simples facto de transformarem estas últimas em elos de redes e movimentos mais amplos e com maior capacidade transformadora. Por outro lado, tais articulações tornam possível a aprendizagem recíproca e contínua, o que, em nosso entender, é um requisito essencial para o êxito das práticas democráticas animadas pela possibilidade da democracia de alta intensidade.

Porque a nossa opção neste projecto foi analisar experiências locais de aprofundamento democrático, a articulação entre o local e o global surge nestas conclusões como uma questão a que não podemos por agora dar resposta, mas que se nos afigura fundamental responder no futuro. Mesmo assim, alguns dos casos analisados dão conta, pelo menos implicitamente, dessa articulação. No caso da comunidade de paz de San José de Apartadó, essa articulação é explicita. Uribe mostra a importância da rede de solidariedade transnacional no sentido de dar visibilidade, tanto nacional, como internacional, à luta pela paz desta comunidade colombiana. Por outro lado, embora tal não tenha sido o nosso objectivo analítico, sabemos que as experiências do orçamento participativo têm vindo a surgir em várias cidades do Brasil e de outros países da América Latina, que as experiências mais recentes têm ganho com a experiência das mais antigas e que há mesmo redes de cidades, nomeadamente no âmbito das cidades do Mercosul, com o objectivo de discutir em comum as diferentes experiências e modelos de democracia participativa, seus limites e suas potencialidades. A força da globalização contra-hegemónica no domínio da ampliação e do aprofundamento da democracia depende em boa medida da ampliação e aprofundamento de redes nacionais, regionais, continentais ou globais de práticas locais.

3. Os perigos da perversão e da cooptação. Vimos como as aspirações revolucionárias de participação democrática no século XIX se foram reduzindo, no decorrer do século XX a formas de democracia de baixa intensidade. Com isso, os objectivos de inclusão social e de reconhecimento das diferenças foram sendo pervertidos e convertidos no seu contrário. Ao perigo de perversão e de descaracterização não estão, de modo nenhum, imunes as práticas de democracia participativa. Também elas, que visam ampliar o cânone político e, com isso, ampliar o espaço público e os debates e demandas sociais que o constituem, podem ser cooptadas por interesses e actores hegemónicos para, com base nelas, legitimar a exclusão social e a repressão da diferença. Os textos de Paoli e de Guerra dão conta desse perigo.

Mas a perversão pode ocorrer por muitas outras vias: pela burocratização da participação, pela reintrodução de clientelismo sob novas formas, pela instrumentalização partidária, pela exclusão de interesses subordinados através do silenciamento ou da manipulação das instituições participativas. Estes perigos só se podem prevenir através da aprendizagem e da auto-reflexividade constantes donde se possam extrair incentivos para novos aprofundamentos democráticos. No domínio da democracia participativa, mais do que em qualquer outro, a democracia é um princípio sem fim e as tarefas de democratização só se sustentam quando elas próprias são definidas por processos democráticos cada vez mais exigentes.

4. Democracia participativa e democracia representativa. Esta é talvez a questão a que os estudos reunidos neste volume dão mais respostas e, por isso, lhe dedicamos mais espaço. A solução dada pela teoria hegemónica da democracia ao problema da relação entre democracia representativa e democracia participativa – a solução das escalas – não é uma solução adequada porque deixa intocado o problema das gramáticas sociais e oferece uma resposta simplista, exclusivamente geográfica, ao problema da combinação entre participação e representação.

As experiências estudadas neste projecto oferecem uma resposta alternativa ao problema democrático. Elas mostram que a capacidade de lidar com a complexidade cultural e administrativa não aumenta com o aumento das escalas. E mostram, sobretudo, que existe um processo de pluralização cultural e de reconhecimento de novas identidades16 que tem como consequência profundas redefinições da prática democrática, redefinições essas que estão além do processo agregativo próprio à democracia representativa.

A nosso ver existem duas formas possíveis de combinação entre democracia participativa e democracia representativa: coexistência e complementaridade. Coexistência implica uma convivência, em níveis diversos, das diferentes formas de procedimentalismo, organização administrativa e variação de desenho institucional. A democracia representativa a nível nacional (domínio exclusivo a nível da constituição de governos; a aceitação da forma vertical burocrática como forma exclusiva da administração pública) coexiste com a democracia participativa a nível local, acentuando determinadas características participativas já existentes em algumas democracias dos países centrais (Mansbridge, 1990).

A segunda forma de combinação, a que chamamos complementaridade, implica uma articulação mais profunda entre democracia representativa e democracia participativa. Pressupõe o reconhecimento pelo governo de que o procedimentalismo participativo, as formas públicas de monitoramento dos governos e os processos de deliberação pública podem substituir parte do processo de representação e deliberação tais como concebidos no modelo hegemónico de democracia. Ao contrário do que pretende este modelo, o objectivo é associar ao processo de fortalecimento da democracia local formas de renovação cultural associadas a uma nova institucionalidade política que recoloca na pauta democrática as questões da pluralidade cultural e da necessidade da inclusão social. Tanto no caso do Brasil quanto no caso da Índia, os arranjos participativos permitem a articulação entre argumentação e justiça distributiva e a transferência de prerrogativas do nível nacional para o nível local e da sociedade política para os próprios arranjos participativos. A democracia representativa é interpelada a integrar no debate político-eleitoral propostas de reconhecimento cultural e de inclusão social.

A concepção de complementaridade é diferente da de coexistência porque, tal como vimos nos casos do Brasil e da Índia, ela implica uma decisão da sociedade política de ampliar a participação a nível local através da transferência ou devolução para formas participativas de deliberação de prerrogativas decisórias a princípio detidas pelos governantes. Assim, seja no caso do orçamento participativo no Brasil ou dos panchayats na Índia, as assembleias a nível regional ou a decisão pelos conselheiros decorre de uma opção feita pela sociedade política de articular participação e representação.

Parece evidente que a primeira forma de articulação entre democracia participativa e democracia representativa, a coexistência, prevalece nos países centrais, enquanto a segunda, a complementaridade, começa a emergir nos países semiperiféricos e periféricos. Se assim for, é possível concluir que o aprofundamento da democracia não ocorre necessariamente a partir dos mesmas características presentes nos países centrais onde a democracia foi primeiro introduzida e consolidada. As características que permitiram a originalidade democrática podem não ser necessariamente as mesmas características que permitem a sua reprodução ampliada e aprofundada. Por isso, o problema da inovação cultural e do experimentalismo institucional torna-se ainda mais premente. As novas democracias devem, se tal perspectiva está correcta, transformar-se em novíssimos movimentos sociais, no sentido que o Estado deve transformar-se num local de experimentação distributiva e cultural. É na originalidade das novas formas de experimentação institucional que se podem localizar os potenciais emancipatórios ainda presentes nas sociedades contemporâneas. Esses potenciais para serem realizados precisam estar em relação com uma sociedade que aceite renegociar as regras da sua sociabilidade, acreditando que a grandeza social reside na capacidade de inventar e não de imitar.

Teses para o fortalecimento da democracia participativa

Pretendemos concluir esta introdução com três teses para o fortalecimento da democracia participativa.

Tese 1. Pelo fortalecimento da demodiversidade. Esta tese implica reconhecer que não existe nenhum motivo para a democracia assumir uma só forma. Pelo contrário, o multiculturalismo e as experiências recentes de participação apontam no sentido da deliberação pública ampliada e para o adensamento da participação. O primeiro elemento importante da democracia participativa seria o aprofundamento dos casos nos quais o sistema político abre mão de prerrogativas de decisão em favor de instâncias participativas.

Tese 2. Fortalecimento da articulação contra-hegemónica entre o local e o global. Novas experiências democráticas precisam do apoio de actores democráticos transnacionais nos casos em que a democracia é fraca como ficou patente no caso colombiano. Ao mesmo tempo, experiências alternativas bem sucedidas como a de Porto Alegre e a dos panchayats na Índia precisam expandir-se para se apresentarem como alternativas ao modelo hegemónico. Portanto, a passagem do contra-hegemónico do plano local para o global é fundamental para o fortalecimento da democracia participativa.

Tese 3. Ampliação do experimentalismo democrático. Foi possível perceber no texto acima que as novas experiências bem sucedidas emergiram de novas gramáticas sociais nas quais o formato da participação foi sendo adquirido experimentalmente. É necessário para a pluralização cultural, racial, e distributiva da democracia que se multipliquem experiências em todas estas direcções.

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Este debate iniciara-se no século XIX pois até então e por muitos séculos a democracia tinha sido considerada consensualmente perigosa e, por isso, indesejada. O seu perigo consistia em atribuir o poder de governar a quem estaria em piores condições para o fazer: a grande massa da população, iletrada, ignorante e social e politicamente inferior (MacPherson, 1966).

Este debate, como de resto quase todos os outros sobre a democracia, tinha sido antecipado por Rousseau quando afirmava no Contrato Social que só poderia ser democrática a sociedade onde não houvesse ninguém tão pobre que tivesse necessidade de se vender e ninguém tão rico que pudesse comprar alguém.

Santos, 2001.

Entendemos aqui o conceito de hegemonia como a capacidade económica, política, moral e intelectual de estabelecer uma direcção dominante na forma de abordagem de uma determinada questão, no caso a questão democrática. Entendemos, também, que todo processo hegemónico produz um processo contra-hegemónico no interior do qual são elaboradas formas económicas, políticas e morais alternativas. No caso do debate democrático actual isso implica uma concepção hegemónica e uma concepção contra-hegemónica de democracia. Para o conceito de hegemonia vide Gramsci (1973).

A doutrina schumpeteriana da democracia adopta integralmente o argumento da manipulação dos indivíduos nas sociedades de massa. Para Schumpeter, os indivíduos na política cedem a impulsos irracionais e extra-racionais e comportam-se de maneira quase infantil ao tomar decisões (Schumpeter, 1942: 257). Schumpeter jamais procurou diferenciar grandes mobilizações de massas de formas de acção colectiva, tornando o seu argumento sobre a generalidade da manipulação de massas na política extremamente frágil. Para uma crítica, vide Melucci, 1996; Avritzer, 1996. A vulnerabilidade do argumento schumpeteriano não impediu que esse fosse amplamente utilizado pelas concepções hegemónicas da democracia.

Bobbio analisa, de forma diferente de Schumpeter, os motivos pelos quais a participação dos indivíduos na política se tornou indesejável. Para ele, o elemento central que desincentivaria a participação é o aumento da complexidade social nas democracias contemporâneas. (Vide Bobbio, 1986). Discute-se o argumento da complexidade assim como as suas limitações mais adiante.

É possível, no entanto, perceber que a explicação sobre a questão do consenso pela teoria hegemónica da democracia deixa a desejar (Manin, 1997). Para a teoria hegemónica o problema do consenso adquire relevância apenas no acto de constituição de governos. No entanto, o ato de constituição de governos é um ato de agregação de maiorias e, dificilmente, leva a consensos em relação às questões da identidade e da prestação de contas dos governantes. Portanto, se a explicação para o abandono do sistema de rodízio de posições administrativas parece ser correcta, ela de forma alguma conduz ao reconhecimento superioridade das formas de representação em relação às formas de participação. Ela apenas aponta para a necessidade de um fundamento diferente para a participação, no caso, o consenso em relação às regras da participação.

Entre os autores do campo hegemónico, Adam Przeworski foi o que mais destacou o problema da indeterminação de resultados na democracia. Para ele, "a democratização é o processo de submeter todos os interesses à competição da incerteza institucionalizada" (Przeworski, 1984: 37). No entanto, a incerteza institucionalizada para Przeworski é a incerteza de quem ocupará posições de poder numa situação de democratização e se esse resultado poderá ser revertido ou não. O conceito de democracia com o qual trabalhamos aqui implica um nível superior de indeterminação, na medida em que implica a possibilidade da invenção de uma nova gramática democrática.

A posição de Habermas, no entanto, tende a concentrar-se numa proposta de democracia para certos grupos sociais e para os países do Norte. Criticado pelas limitações da sua concepção de público (Fraser, 1995; Santos, 1995: 512; Avritzer, 2002), Habermas parece ter feito um esforço apenas no sentido da integração de actores sociais dos países do Norte. Vide Habermas, 1992.

Para alguns autores, esta prioridade está inscrita na própria matriz do paradigma da modernidade ocidental, com a sua ênfase na ideia de progresso assente no crescimento económico infinito. E, por isso, ocorreu, ainda que de modos distintos, tanto nas sociedades capitalistas, como nas sociedades socialistas do Leste europeu (Marramao, 1995).

obre essa questão, vide também Sader, no presente volume desta colecção.

Sobre essa questão, vide também Sader no presente volume.

Sobre essa questão, vide também Sader neste volume..

Vide Santos, no presente volume desta colecção.

Vide Heller e Isaac, no presente volume desta colecção.

O tema das identidades e do princípio do reconhecimento da diferença é tratado em detalhe no terceiro volume desta colecção.

Published 3 November 2003
Original in English

Contributed by Revista Crítica de Ciências Sociais © Boaventura de Sousa Santos, Leonardo Avritzer Eurozine

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